sábado, 30 de abril de 2011
CÚMPLICES
A razão porque não gosto de ver séries não sacadas por mim: ter de ouvir, entre suspiros falsos e mamas de silicone, que politics is based on business models com a convicção de quem profere uma evidência, incontornável e, quiçá, até natural. Ah, zeitgeist dum cabrão.
A RESPONSABILIDADE DA ESCOLHA
Quando um mentiroso inveterado continua, apesar de todos o saberem - e terem - como mentiroso, a mentir impunemente e, para mal dos nossos pecados, ainda é premiado (e elogiado) por isso então a questão que sobra é uma e apenas uma: de quem é verdadeiramente a culpa? O mentiroso apenas exibe a sua natureza mentirosa; é como é e, sendo culpado, não tem verdadeira culpa de ser o triste embuste que é. Já quem o tolera, aqueles que o elogiam e premeiam, aqueles que, o sabendo mentiroso, não o escorraçam sob pena de apedrejamento da praça pública, eis os verdadeiros culpados: esses, sim, a partir do momento que compreenderam a natureza mentirosa do ignóbil, vil e torpe mentiroso, esses, sim, esses puderam escolher.
NO CARROSSEL
Ele vai e vem e dá,
ele vai e vem e tira;
ele vai e vem e volta a dar,
ele vai e vem e volta a tirar.
Diz que o vai e vem é que tem piada.
ele vai e vem e tira;
ele vai e vem e volta a dar,
ele vai e vem e volta a tirar.
Diz que o vai e vem é que tem piada.
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (XI)
[Este pressupõe mesmo a leitura disto primeiro]
E ele esperou. E o António, um dia depois, mais concretamente vinte e três horas e trinta e sete minutos depois, a correr, tendo voado por cima do oceano, feito escala em Madrid, um António choroso pôde ainda abraçar o seu inconsciente pai. E que abraço foi esse. Um abraço do vivo com o que ainda não morreu, num limbo se encontrava porque nem vivia nem morria, estava ali no meio, num sítio esquisito, algures no espaço e no tempo, mas um espaço e um tempo diferentes do nosso. Foi um abraço que dizia em voz alta para não ires, fica, fica aqui comigo, perdoa-me por ter ido, nunca mais vou, não te vás tu também.
Enxugadas as lágrimas, talvez não seja o melhor termo, talvez tenham petrificado, solidificado congeladas pelo terror da única coisa que é definitiva, talvez os canais lacrimais tenham ficado entupidos. Não se sabe. Talvez a desidratação, espécie de seca interna, morte anunciada, tenha chegado ao António e ele não chorava porque não tinha mais por onde chorar. Talvez o corpo não chorasse mas a sua alma, em sangue, chorasse pelos dois, afinal se pode a alma ter sangue, pode o corpo chorar sem se ver. Misteriosos são os caminhos do mundo, planeta recôndito onde uns poucos andam aos saltos, brincam, crescem, vivem, amam-se, detestam-se e depois, uns míseros anos depois, morrem, decompõem-se, esvaem-se para algum lugar, um outro lugar. Ou para lugar nenhum. Ninguém sabe, e que terrível condição esta de se dar um abraço sem se saber se é um até já ou um até sempre. Quando alguém vai podemos sempre perguntar, quando voltas, vens tarde ou vens jantar, mas quando se vai, quando se vai e não se volta, não sabemos nós se quando formos vamos ou não encontrarmo-nos outra vez, não sabemos se esse alguém vai ou se simplesmente foi. Mistérios da vida. Mistérios da morte. Não faz a vida sentido sem a morte, não faz a morte sentido pura e simplesmente.
Num mundo sem sentido, onde as lágrimas secam mesmo quando são eternas, tudo é complexo, tudo é triste, tudo é infelicidade quando estamos infelizes, tudo é feliz quando estamos felizes. Subjectividades do Homem, coisas das emoções, nesta altura nada seria bom para o António, nada que não fosse uma espécie de lazarificação de seu pai, que se levantasse e andasse como o outro, que isto fosse um pesadelo, que ele acordasse, o quer que fosse, não interessava, só queria que seu pai vivesse, ainda era tão novo, então e aquela marisqueira que querias fazer comigo, bolas, vamos a isso, uma marisqueira contigo, como foi que eu não quis, que estúpido, que ingrato, deste-me tudo e eu não te dei nada.
Complicada a consciência, retorcido o remorso. De repente, o culpado quase que era o António, não tinha cumprido com as suas obrigações, tinha falhado, e agora como é que haveria de remediar a situação. Tristes os humanos que perante o inevitável ainda tentam o impossível, só sairão desiludidos, mas assim é o espírito e o engenho do Homem, a esperança é a última a morrer, só esperemos nós que o António não a gaste toda, afinal ainda é miúdo novo, tem muito para viver e muito que esperar.
Passaram-se horas sem que nada acontecesse, ainda bem, ainda mal, não se sabe, se a única coisa que se esperava que pudesse acontecer era o inevitável, então ainda bem que não acontecia nada, ali naquela posição esperaria o António para sempre, ali ficaria até à sua própria eternidade se isso significasse que o pai não se ia, horrível situação aquela de quem cá fica, egoísmo da separação, talvez não tanto, afinal era ele também que se ia embora, era parte do seu coração, da sua alma, de si, era tudo isso que também ia e ninguém gosta de perder assim tanto.
E foi de repente que algo aconteceu. Primeiro um leve tremer que nem o mais potente de todos os sismógrafos acusaria, um tremer que só quem tremia também poderia sentir. Depois um breve tremelique numa pálpebra esquerda, seguido de mais um na direita. E depois o impossível aconteceu e Honório, homem de honra e do trabalho, talentoso contador de estórias, antigo barbeiro e novo empregado de restaurante, mais do que tudo isso, Honório, pai de António, abriu os olhos e viu. Visão sagrada, se haveria coisa que ele quereria ver pela última vez neste mundo seria precisamente aquilo que via agora, a cara de seu filho, o seu mais que tudo, semente da sua semente, o seu maior feito, o seu legado a este mundo porque dos seus outros legados nunca mais ele tinha ouvido falar, legado à Humanidade, legado aos outros, legado a si próprio porque a única razão que poderia justificar a sua existência era precisamente aquele último rebento, o renegado dos renegados, aquele que àquela lareira no Vimieiro com ele tinha chorado também.
Se a espinal medula serve para transportar horrores não deixará igualmente de servir para transportar grandes felicidades e não haverá certamente palavras suficientes no alfabeto português
como em qualquer outro
para explicar o que sentiu o António com tal acordar, a esperança não tinha morrido, renascia agora com ainda mais força, é um milagre, se ainda não o é vai ser de certeza. Foi com comoção e grande choradeira, choradeira contida, silenciosa, mas claro sinal de que mais lágrimas ainda havia por sair pelos olhos, que o António viu seu pai apertar-lhe a mão e com grande dificuldade, parecia que o peso da morte lhe esmagava o peito, tentar falar. António pediu desculpa, disse-lhe o quanto o amava, que não devia ter ido, que devia ter ficado, que nunca mais iria a lado algum, desculpa quando me portei mal, desculpa quando te menti, desculpa por tudo, tu és a pessoa mais importante na minha vida, vais ficar melhor, não te preocupes, força, não fales, descansa porque vais te pôr bom, e foi aí que o abraçou, um abraço cuidadoso porque o pai estava frágil mas um abraço com toda a força da alma, e se o Homem pode muita coisa, pode porque a alma é grande, imensa e infinita e foi precisamente com essa força imensa e infinita da alma, com a força grande e invencível do amor que o António abraçou o seu pai, abraçou-o como se não houvesse mais abraços, situação extrema, tragédia constante, assim seria, aquele seria o último abraço em vida de seu pai. Sorte ainda o capricho da vida ter permitido tal coisa, sorte porque a morte é muito pior quando há coisas que ficam por dizer, desse fardo se livrou o António e desse fardo também se livrou o Honório porque não se foi sem que antes, trémulo e balbuciante, dissesse entredentes e com grande dificuldade, força filho, amo-te muito, desejo-te toda a sorte do mundo, toda a sorte do mundo, que Deus te proteja,
coisa mais bonita que esta não há
foi com este desejo que o Honório partiu, para onde já ninguém sabe, nem ninguém virá a saber.
(Cont.)
SGT. PEPPER
The Beatles, 'Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band', Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967)
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (X)
Longe vão os tempos daquela sexta-feira, treze de Outubro de mil trezentos e sete, dia azarado para Jaques de Molay, Grão Mestre da Ordem dos Templários, que se viu a si próprio preso por acusações de heresia
tal como a maior parte dos seus correligionários
por ordem do Rei Felipe IV, o Belo, e do Papa Clemente V, este de clemente tinha muito pouco. Haveria de, passados uns tempos, enquanto ardia na fogueira, o infortunado líder dos Templários amaldiçoar aqueles que o prenderam, e de facto assim foi, no prazo de um ano tanto o papa como o rei foram deste para o outro mundo deixando para trás a noção de que das sextas-feiras treze coisa boa não haveria de vir para ninguém. Talvez por isso estes particulares dias treze, ou por outro lado, estas particulares sextas-feiras sejam alvo de tanto temor, o António não acreditava nisso, até ao dia, diriam os que acreditam, até ao dia, diriam os que tinham medo, e foi mesmo, foi até ao dia em que o Sr. Crispim, naquela sexta-feira treze em particular, lhe telefonou com a voz embargada a dizer que o Honório, homem honrado e exemplo para todos, estava internado no hospital após um terrível ataque do coração, em coma se encontrava, foi muito grave, muito grave mesmo, tão grave que as esperanças eram nulas, estava por horas.
Foi até esse dia porque foi nesse dia que não caiu o Carmo e a Trindade, mas caíram muitas outras coisas, coisas que os humanos não vêem, só sentem. Foi até esse dia porque depois de se viver um dia assim, todos os outros dias são dias diferentes. Foi até esse dia porque a seguir não há mais dias como dantes. Foi até esse dia porque para todo o sempre esse dia seria Aquele dia, o dia em que tudo se foi e tudo se virou, ou seja, o dia pior de todos os dias, o dia pior de todos os que o antecederam e pior de todos os que lhe sucederam. Foi o pior dia da vida do António. Ponto final. Só ele e todos aqueles que por semelhante coisa passaram conhecem a sensação de frio, triste, gélido e cortante frio, sentimento petrificante e horroroso, tenebroso temor este, coisa monstruosa que nasce do ponto mais baixo da espinal medula e envenenando todos os nervos que a ela estão ligados, vai subindo imparável e inapelavelmente até ao coração, aos pulmões,
é difícil respirar
ao cérebro,
é difícil pensar
à alma,
é difícil viver
o impensável acontecera, ò Meu Deus, não, não, não me faças isso, não lhe faças isso, não nos faças isso, não, não e não. Gritos silenciosos porque a voz não fala, não se consegue ou não se quer, gritos molhados porque o balde de tudo o que é sentimento se entorna, escorre, volta a encher-se e volta a entornar-se, uma, duas, três e mais vezes, para sempre estará meio cheio, sempre estará até ao fim dos seus dias cheio da mágoa e da tristeza daquilo que ainda não tendo acontecido o António soube imediatamente que iria acontecer. Gritos de dor, angústia e de tristeza, da mais pura das tristezas, daquela tristeza que nos muda o olhar, nos traz uma nova expressão de preocupação, uma expressão que irá connosco para a cova porque todos os dias a exprimiremos e de tanto o fazermos ficará marcada no rosto como uma cicatriz da guerra, uma marca de água, um sinal da erosão dos tempos, ainda depois de mortos o nosso rosto, lido e estudado pelos vivos, dirá, este homem sofreu, pode até ter sido feliz mas houve um dia em que sofreu por todos os dias de felicidade que até aí tinha vivido ou que ainda viria a viver. Cicatriz, marca ou corte na alma. Talvez vá connosco para o Além, talvez fique com o que de nós ficar no caixão até deste e de nós não restar mais do que aquela poeira que até os germes rejeitam. Talvez as duas coisas. Talvez se vá com os gritos raivosos do António. Gritos de lamento. Gritos de guerra. Gritos de morte.
O António empalidecia. A chorar, só se quer ir, correr, voar, como é que se está tão longe, ò Meu Deus, eu sabia,
aquele abraço
nunca devia ter vindo, vamos, vamos, vou, tirem-me daqui, a correr para o aeroporto, no primeiro voo
de ligação ou directo
qualquer que seja o preço, tenho de ir para casa, tenho de ver o meu pai enquanto está cá neste mundo, por favor não te vás já, espera por mim, quero um último abraço, um último carinho, um último centímetro do teu amor, quero por uma última e definitiva vez saber com toda a certeza que há alguém neste mundo que me ama, porque certeza do amor como o amor dos pais nunca mais ninguém a há de dar, quero que antes de te ires saibas que te amo, porque não há maior amor do que o amor dos filhos. Espera por mim. Espera. Espera. Espera.
(Cont.)
sexta-feira, 29 de abril de 2011
IMPERATIVO CATEGÓRICO
"Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal."
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785)
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785)
quinta-feira, 28 de abril de 2011
OS CORRUPTOS
Num sussurro, os corruptos falam, sem se deixarem ouvir, discutindo, com afinco, como gerir o dinheiro dos outros. É a nova elite: os donos dos cordéis que manietam um país, que lhe pesam, que o entorpecem e conduzem, sem vergonha, de volta em volta a não mais sair do buraco para onde essas mesmas bestas o atiraram. As pretensas elites, burras, esconsas e saloias, fazem a festa com as misérias dos outros: egoístas mal-formados, interesseiros peçonhentos, cabrões, cabrões, cabrões, em nome da igualdade, do "estado-social" e dos pobres e oprimidos continuam, impunemente, a planear, implacavelmente, como gastar o que, não sendo deles, ninguém tem, em coisas que apenas a eles dá jeito e que, invariavelmente, os tais pobres e oprimidos, com a sua miséria, continuarão a pagar. Parasitas! São eles, esses filhos da puta, que com a sua insaciável voracidade oprimem os pobres condenando-os a uma miséria que nunca deveria ser a deles. Que nojo que me mete esta gentalha. Que nojo.
DIVAGAÇÃO
Era triste, não era?
Não sermos nós,
junto com todos os outros,
mais do que o melancólico divagar
de um velho perdido no mar.
Não sermos nós,
junto com todos os outros,
mais do que o melancólico divagar
de um velho perdido no mar.
DO CONSERVADORISMO (II)
Seguindo daqui.
O que é viver melhor? Ter mais paz, mais segurança, mais empregos e oportunidades; poder subir na vida, ter níveis de educação e de bem estar superiores. Ter mais liberdade, ser mais feliz.
O que é viver melhor? Ter mais paz, mais segurança, mais empregos e oportunidades; poder subir na vida, ter níveis de educação e de bem estar superiores. Ter mais liberdade, ser mais feliz.
DO CONSERVADORISMO
Com a impossibilidade de discernir um sentido -ou significado - particular e infalível sobre o que - ou a qual - deve ser a vida humana (uma verdade absoluta que resolva o dilema humano) percebe-se, por essa singela razão, que nunca, em momento algum, poderão haver certezas suficientes para se impor, pela parte de uns pretensamente iluminados, aos outros, pretensamente ignorantes, aquela suposta verdade; torna-se, portanto, evidente que a única coisa a almejar por parte do poder público é que este tenha a capacidade de contribuir para que as pessoas vivam melhor.
terça-feira, 26 de abril de 2011
RACIONALIDADE
Gato escaldado de água fria tem medo; já o humano de sol escaldado em sol escaldante reincide. Ao final das contas quem é racional aqui, quem é? O medricas sem razão ou o incauto sem previdência?
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (IX)
Lembrava agora o António, com saudade,
esse sentimento que é português e não é de mais ninguém
o momento em que se viu enrolado com a Raquel, rapariga bem torneada e de cabelos compridos, bem feita de peito e de rabo, com uns calções de lycra branca e uma apertada t-shirt. Estava-se no, entretanto desertificado, balneário feminino, após a aula de educação física, local para onde a dita rapariga
moça dada aos relacionamentos ocasionais
havia arrastado o António. O nosso amigo nunca foi muito adepto desses encontros de ocasião, os tempos também eram outros é certo, mas sempre lhe agradou mais a difícil conquista da inocência do que a fácil partilha da luxúria. Visão conservadora esta, talvez hoje em dia seja tudo diversão, mas para o António a busca era mais pelo amor do que apenas pelo sexo. Personagem caricata, talvez não
no entanto agora se compreende o porquê da relevância deste episódio
de qualquer forma, personagem caricata ou não, nunca dá um rapaz adolescente uma resposta negativa a uma oportunidade tão flagrante, afinal que mal é que tem, a miúda era gira, muito gira mesmo, está bem que já alguns amigos haviam descrito grandes habilidades sexuais com ela, mas o rapaz tinha protecção, era precavido, e estava cheio de vontade de fazer aquilo que nunca antes havia experimentado.
Não se pode dizer que a importância deste acontecimento esteja directamente relacionada com a grande duração do mesmo. Para sermos honestos e sinceros, a duração não foi muita. A intensidade, essa sim, para o António foi impressionante, mesmo inacreditável. Para a Raquel, pelos esgares eróticos que produziu, grande barulheira ela fez, pareceu ser também grande a intensidade do acontecimento, subentende-se que ou era boa actriz ou então era mulher de orgasmo fácil. Facto indiferente para o António, porque se a mulher resolve fingir o problema é mesmo só dela, não que ao António não importasse satisfazer a Raquel, afinal que bela dádiva ela lhe tinha dado ao desvirginá-lo mas, dizíamos, se a rapariga resolveu fingir, o problema é mesmo só dela porque toda a gente sabe que se uma mulher parece satisfeita a única coisa que com isso diz ao homem é que sim senhor, és um garanhão, fizeste tudo bem, e o pobre coitado, enganado na sua competência, convicto da sua qualidade, não vê mesmo razões nenhumas para mudar nada
em equipa que ganha não se mexe
e quem vai continuar a ficar insatisfeita é mesmo a mulher. Isto se houver segundas núpcias e o certo é que houve, segundas, terceiras, quartas e muitas mais, durou muitos meses e foi precisamente com a Raquel que o António se iniciou nas artes do amor. Talvez seja um cliché falarmos de artes do amor mas a verdade é que é isso que faz sentido porque tudo aquilo que na vida é bonito, único e irreproduzível só pode mesmo ser considerado uma arte.
Não saberemos aqui dizer se foi uma profunda paixão aquilo que o António sentia pela Raquel. Talvez não fosse. No entanto, quando se é adolescente, dos adolescentes mais velhos, aqueles que acham que já sabem tudo, descobrir de repente que se gosta de alguém não dá azo a grandes questões sobre o que é o amor
essas ficam para mais tarde
aquilo que interessava mesmo era que gostavam os dois um do outro e se sentiam bem partilhando aquilo que de mais íntimo há, ou seja, a intimidade do nu, do toque e da carícia. Sejamos, também, honestos para com a rapariga porque não era actriz nenhuma, simplesmente gostava de sexo, gostava do António
não forçosamente por esta ordem de preferências
e muitas e muitas coisas lhe ensinou, daqueles ensinamentos que não se falam, apenas se transmitem, só se sentem, daqueles ensinamentos que parece que vêm de dentro de nós, coisas que mesmo ainda não sabendo parece que afinal já sabíamos. Foi, por tudo isto, com tristeza que o António viu a Raquel mudar de escola
o pai foi transferido
e dela nunca mais o António ouviu falar. Não admira, portanto, que, olhando para trás, para a vida que agora acabava, a Raquel juntamente com a sua boa disposição fosse um peso importante no tal balanço, fundamental mesmo, uma recordação agradável e um acontecimento de grande dimensão que ficaria para sempre na peneira da memória, lembrança de grande felicidade e também marca de alguma tristeza porque da primeira vez nunca se esquece e o António tinha pena da forma abrupta como as coisas tinham acabado. Enfim, assim é a viagem do amor, feliz na partida e triste na chegada.
(Cont.)
BEM APROPRIADO A sÓCRATES, O PEQUENO
"Os homens vaidosos, que sem terem consciência de grande capacidade se deliciam em julgarem-se valentes, tendem apenas para a ostentação, não para os actos, pois quando surgem perigos ou dificuldades só os aflige ver descoberta a sua incapacidade."
Thomas Hobbes, Leviatã
Thomas Hobbes, Leviatã
DO CONHECIMENTO CONDICIONAL
"Nenhuma espécie de discurso pode terminar no conhecimento absoluto dos factos, passados ou vindouros. Porque para o conhecimento dos factos é necessária primeiro a sensação e depois disso a memória; e o conhecimento das consequências... não é absoluto mas condicional. Ninguém pode chegar a saber, através do discurso, que isto ou aquilo é, foi ou será, o que equivale a conhecer absolutamente. É possível apenas saber que, se isto é, aquilo também é; que, se isto foi, aquilo também foi; e que, se isto será aquilo também será; o que equivale a conhecer condicionalmente."
Thomas Hobbes, Leviatã
Thomas Hobbes, Leviatã
DO MOVIMENTO
"O sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos a tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constantemente, é aquilo a que os homens chamam felicidade; refiro-me à felicidade nesta vida. Pois não existe uma perpétua tranquilidade de espírito enquanto aqui vivemos, porque a própria vida não passa de movimento, e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação."
Thomas Hobbes, Leviatã.
Thomas Hobbes, Leviatã.
PÁSCOA
Para acompanhar o cabrito, da garrafeira do Senhor Engenheiro, primeiro foi este:
Para finalizar, passeámos pelo Justirini & Brooks e por uma maravilhosa ginginha caseira. À medida que os anos de fermentação passavam por nós, ocupámo-nos de velhas memórias, novíssimos anseios e mui respeitáveis planificações para o futuro. Um dia em cheio, portanto.
A seguir, da garrafeira do Senhor Fadista, foi este:
sexta-feira, 22 de abril de 2011
DIFICULDADES
Para aqueles que se pensam uma grande coisa fica o seguinte pensamento: a nossa dificuldade de compreender um latido de um cão é igual à dificuldade que eles - os cães - têm em compreender uma frase bem composta de um ser humano.
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VIII)
Sentado na mesa da esplanada da piscina, gozava mais um gin tónico. Já tinha perdido a conta a quantos tinha bebido nesse dia. Talvez uns seis. Cinco? Mais de quatro seguramente. Ao pensar nestas quantificações, acabou por encolher os ombros. Não lhe interessava saber. Para ele a importância residia agora no momento. Nos escombros de uma vida passada, enquanto não assumia uma nova, enquanto permanecia ali no limbo intemporal, nada tinha consequências, nada importava demasiado, nada o afectava. Pairava sobre a realidade, ou pelo menos assim ele o pensava, estranha coisa esta da auto percepção da existência, dá para nos acharmos coisas diferentes das que somos, dá para nos imaginarmos o que
convenhamos
pode ser uma coisa fantástica, aí nascem sonhos e devaneios, aí nascem mundos novos mas,
não esqueçamos
tudo o que é bom tem o seu risco, o seu medo, se podemos imaginar também nos podemos perder. E se andar perdido durante uns tempos até pode ser engraçado, o complicado é se nos perdermos de mais, que é como quem diz se perdermos o caminho de volta para casa. Há quem dela saia com um cordel, daqueles de rija estrutura, preso à porta de casa e atado ao pé ou segurado pela sua ponta por uma mão, e, dessa maneira, segura e séria, passo atrás de passo, com resoluta confiança pode o cauto caminhante seguir o seu percurso ziguezagueante, pode ele ir à vontade porque quando desse sem destino passeio se fartar, bastar-lhe-á dar meia volta, virar, volver e, com toda a calma, seguir o cordel que o liga ao porto seguro do seu ninho. Mas o Lázaro, esse incauto viajante, esse ia sem cordel algum, ia livre como um passarinho, longe da terra que o viu nascer e da outra que o viu crescer e, assim, sabe-se lá onde irá parar e se desse local alguma vez irá regressar. Iludia-se ele a pensar que por menos gins que bebesse nunca estaria completamente sóbrio tal como por mais que bebesse nunca estaria profundamente embriagado.
Perdido nestes e em muitos outros ébrios e alucinados pensamentos, Lázaro estendeu as pernas. Os músculos doíam-lhe de tanto ter andado naquele dia. Afinal não era nenhuma divindade acima das corriqueiras coisas da vida, não era mesmo, tinha pernas e músculos e estes, como todos, cediam perante o cansaço. Riu-se sozinho. Primeiro baixinho. Depois mais alto, até que começou a rir à gargalhada, o riso vinha-lhe sem saber porquê, do mais profundo do seu ser, daquele sítio onde os pensamentos conscientes não conseguem penetrar, não senhor, por mais que tentem, não conseguem, as coisas vêm e inundam-nos a cabeça, sentimos nós que sabemos muito quando afinal muito poucos de nós sabemos o que sentimos. Aquele homem ria perdidamente. Sem saber porquê. Ria e ria e ria. E mais um bocado, até que, também ela, a barriga, era como os músculos das pernas, não era divina, cansava-se e, ao começar a doer-lhe, só lhe deu mais vontade de rir, era um homem, um homem sem norte mas era um homem e sentia-se mais vivo do que alguma vez se havia sentido na sua vida inteira. Aos poucos e poucos o riso gastava-se. Soluçou ainda mais umas meias gargalhadas e, no final, já quase só gemia, um gemido de riso, um gemido de gozo, até que se calou, ofegante, cansado, surpreendido pela sua loucura mas feliz por a ter, sentia-se livre, tão livre que se podia rir à vontade sem sequer ter de saber porquê. Suspirou ele, daqueles suspiros de elevada e penetrante profundidade e levantou-se, virou-se de volta para a porta que dava acesso ao hall do hotel e, principiando a caminhar nessa direcção, não viu, ou seja não soube nem sentiu aquele pequena e rasteirante perna de madeira e, por isso mesmo, cedendo à pressão de tão insidioso membro, tropeçou na cadeira onde tinha estado sentado e, cambaleando, acabou por se ir estatelar no chão. De imediato, não fosse algum indesejável observador reparar em tão vergonhosa situação, fez grande força nos braços e nas pernas, levantou-se num ápice e, uma vez de pé, parou, escutou e olhou, não vinha ali nenhum comboio, também ninguém o estava a observar, estava sozinho e, por isso mesmo, à vontade na sua privada solidão, sorriu novamente. Se calhar estaria mais embriagado do que tinha suposto, isso já a gente poderia ter-lhe dito, mas enfim, é melhor quando cada um aprende por si próprio, é essa mesma a receita do conhecimento. Lázaro ali de pé, percebeu, naquele momento, o que o tanto tinha feito rir: a ilusão da divindade. No seu louco devaneio imaginara-se espírito e alma penada, imaginara-se fora de si próprio, acima de si e dos outros, fora da realidade. Imaginara-se realizador de um filme que salpicava os seus olhos com uma realidade que sabia a super oito, a película plástica e imastigável a algo mais do aquele sensaborão, insípido e triste gosto que, via ele agora, talvez fosse mais correcto dizer: saboreava ele agora, mas enfim, percebia ele agora que nunca tinha saboreado a vida como ela realmente era, só como ele desejaria que ela fosse. E ao provar o verdadeiro gosto da vida, não sabia ele o que isso era e, por essa razão, essa razão apenas, não por nenhuma arrogância particular, pelo contrário, por ignorância e reconhecimento dessa mesma falta de conhecimentos, andara ele ao engano, a arrogar-se de superar a realidade, de ser mais do que era, de estar acima de tudo. Ao perceber que afinal, mesmo naquele transe peculiar e inaudito que o submergia numa paz indefinida, que o alagava dentro de si mesmo, mesmo nesse ensopado sensorial, ele continuava a embriagar-se, o álcool afectava-o, isso significava que continuava a ser um homem perene e sensível aos estímulos, um homem como outro qualquer, então, coisa formidável, a sua desconexão não era real, era uma ilusão, uma simples, se bem que estranha, ilusão. A realidade continuava ali. Ele é que se iludia ao acreditar que estava para além dela. Fantástico! Alívio respirado e sentido. Mais um suspiro. E riu-se outra vez, alijado, liberto e, finalmente, descarregado. Apesar de sentir a paz da incoerência ela, afinal, era só aparente. E o medo que lhe assolava os ossos podia agora partir em paz. Ele estava, de novo, no controle de si próprio ou, pelo menos assim, dessa forma infantil e singela, como um petiz que dá os primeiros passos em busca de uma bola azul e encarnada, titubeante, com as pernas a tremer de tanta excitação sensorial, deu um passo atrás para ganhar balanço e recomeçou o caminho. (Cont.)
SONDAGENS
Mais ou menos há um mês atrás comentei com várias pessoas que desconfiava fortemente das sondagens que atribuíam votações acima dos 45% ao PSD. Na altura, exprimi a minha opinião - fortemente condicionada pela crença que o socretinismo acéfalo tudo procura controlar na sociedade Portuguesa com o funesto desejo, que nem um fungo pestilento, de a consumir e destruir - onde veiculava a possibilidade de as sondagens estarem a ser propositadamente insufladas (beneficiando o PSD) com o intuito colocar o inimigo mais à vontade e com menos guarda. Ao mesmo tempo, à medida que o tempo fosse passando, o PSD começaria a descer e o PS a subir dando uma falsa ideia de "recuperação" onde, claro está, o génio "combativo", "heróico" e "messiânico" do grande líder sócrates seria enaltecido. Aí os media, "independentes" e "profundos" na sua análise, veiculariam a "extraordinária dinâmica de recuperação e vitória do PS" bem como a "inabilidade" e "desilusão" do PSD. Não sei se a minha teoria da conspiração tem algum fundamento para lá da minha profunda desconfiança em relação ao bando de criminosos que nos governa ou da eterna capacidade para os fuinhas de serviço, filhos de uma vaca desmamada, que nunca cessam de me surpreender com o seu enorme talento para trair a Pátria; no entanto, que acertei na previsão, acertei. Dia cinco de Junho falamos.
segunda-feira, 18 de abril de 2011
OS PRISIONEIROS DO TEMPO
Tal como um pião que gira e gira e torna a girar também nós giramos sobre o nosso próprio eixo, como que planetas. Esse eixo, ou ponto fixo no conjunto - e intersecção - das dimensões universais configura a identidade; vazia de conteúdo, não passa de uma morada. O conteúdo é o pião, um pequeno receptáculo de momentos que escoam por entre as sinapses da memória e que, a cada momento que perpassam pelo eixo identificativo, consoante a posição por onde o pião passa, consoante a área emocional que ocupa, origina uma emoção. Se repararmos bem a vida é um girar eterno pelas mesmas emoções: tristeza é sempre tristeza, independentemente do que a tenha causado. Quando eu estou triste, eu estou com o meu pião no sector da tristeza e sinto algo. Esse algo é o que sinto sempre que me sinto triste. E porque nós somos o que sentimos, esse algo, naquele momento, é o que eu sou. Consequentemente, se cada vez que sinto tristeza é sempre o mesmo algo que sinto, sendo o que sinto aquilo que sou, então eu sou sempre aquilo quando estou triste. E quantas emoções há? Infinitas? Não. Muito poucas, na realidade. A vida, aliás, seria uma perfeita monotonia se estivéssemos conscientes que estamos sempre a sentir as mesmas coisas. Por isso, o fazedor de momentos, a entidade suprema que, por alguma razão, quer que sintamos essas quatro ou cinco sensações emocionais, o feiticeiro-mor, para que não nos aborreçamos e que continuemos a sentir, cria a ilusão de que amanhã será diferente. Nunca é. É sempre a mesma coisa; tal como o burro que, preso a uma árvore continua sempre a andar para o lado direito convencido que vai a algum lado. Não há lado algum para ir. Tal como peixe que dá a volta ao aquário a pensar - a todos segundos que passam por ele - que está no mar infinito porque nunca se lembra que já ali esteve antes. Também nós, quando sentimos, porque aquilo que nos faz sentir parece ser sempre diferente, também nós nos esquecemos que já ali estivemos antes. E que nunca vamos a lado algum diferente deste pequeno aquário de cinco ou seis emoções. O nosso erro está em pensar que a nossa vida é um percurso; não é: é um passear infinitamente repetitivo por entre as emoções primordiais. Simplesmente, essas emoções são desencadeadas por razões distintas mas, no final, na lista do feiticeiro do cosmos, se lerá, em percentagem certamente, qual a proporção de tristeza, alegria, amor, medo, nojo e atracção que configurou a nossa existência. Quanto às razões que motivaram tais coisas? Tudo aquilo que pensamos ser o mais importante? A nossa vida? Irrelevante. Tal como as cenas de um filme realizado por alguém que, atrás das cenas, nos cativa hipnoticamente com a promessa de uma cena seguinte, até aos créditos finais. A vida não seria assim mais do que uma cadeira de cinema; e eu, sabendo que a minha tristeza só se distingue da tua pelas suas causas, então, se sentimos o mesmo e as causas são irrelevantes, sou forçado a compreender que eu e tu somos o mesmo, talvez diferentes na ilusão e no tempo, mas objectivamente o mesmo, nada mais do que os olhos através dos quais o Criador se entretém observando o resultado da sua própria insanidade. E neste carrossel sem fim, neste eterno rodopiar pelas mesmas sensações sem final algum que não seja o início, nos vemos aprisionados ao destino - que não nos pertence - de querermos acreditar que aquilo que vamos sentir amanhã é melhor do que o que sentimos hoje. Compreender isto é igualmente inútil e desaconselhável, afinal, tal como sempre desconfiámos desde o início, a vida não é mais do que uma viagem numa montanha russa. E aproveitar o passeio não é passar o tempo a olhar para os carris. Quão má será a vida de um peixe de aquário de acordo com os critérios do peixe? Pois é. A verdadeira liberdade será então a simples aceitação de que dentro da nossa prisão até não se está nada mal: haja amor e uma mão amiga.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VII)
O homem deu mais um gole no seu gin. Saboreou-o. Mais uma vez. E outra. Pousou o copo, tendo o cuidado de afastar com a outra mão o livro que tinha em cima da mesa, não queria que ele se molhasse com os círculos de água que, como é normal e habitual, escorrem de um copo fresco poisado em tampo aquecido. Olhou o copo e, percebendo que tanta prova fazia a existência tónica rapidamente se aproximar do seu final, chamou o empregado e pediu mais um. Deu mais um gole, outro, e o gin acabou. Já era o terceiro naquela tarde. Sorveu, de forma barulhenta, como uma criança que termina o seu sumo de pacote na ânsia que o contínuo aspirar transforme o cartão do pacote, ou o gelo do copo neste caso, em mais sumo, nunca acontece, estranhas e repetidas, irreais e ilusórias esperanças que fazem os quotidianos das coisas pequenas. E o homem, tal como esses desiludidos petizes, abandonou o copo. Não seria raro numa criança acabar o sumo com pompa e circunstância, claro, com o estrondo que o pacote pisado com força e secura causa, desde que previamente enchido de ar pela palhinha, esse seria o foguete da pompa, já o fogo de artifício da circunstância seriam as gotas imensas que expelidas de dentro do pacote salpicavam tudo o que estava ao redor. Os miúdos riam-se do seu fogo de artifício e foguete, logo veio a ideia de beber mais sumos para fazer mais explosões, em quase simultâneo como nos tais fogos festivaleiros, para a próxima talvez se juntassem uns três ou quatro e o fizessem todos ao mesmo tempo. O homem recordava precisamente esses momentos da sua infância num torpor melancólico que parecia só se adensar à medida que os álcoois tónicos tomavam o seu lugar na festa cerebral. Esta aumentava de tom, o torpor também; anestesiado, o homem pensou que gostaria de fazer explodir um pacote de sumo, como não tinha nenhum teve de se contentar com um arroto, foi esse o seu festival, mas baixinho e com a mão à frente, não fosse alguém ouvir. Podem muito os torpores alcoólicos, mas por enquanto não tanto que fizessem aquele homem perder a compostura. Chegou o gin tónico. Logo dois goles para manter a dinâmica. E, naquele momento, logo após o segundo gole, e este tinha sido mais pequeno do que o primeiro, um gole de confirmação daquilo que tinha faltado ao primeiro, como se houvesse uma receita mágica da quantidade que teria de ser ingerida naquele momento, um ponto ideal, um encontro entre o tempo, a realidade e o torpor alcoólico, uma fórmula exacta, e se calhar até havia e, naquele instante, estava encontrada. O homem fez um esgar de satisfação, recostou-se na cadeira de verga e fechou os olhos. Suspirou. Colocou as mãos atrás da cabeça e deixou a mente libertar-se do quer que seja que a prendia e, sem esforço, com a energia do vapor alcoólico, principiou a viajar, a percorrer com os olhos, de todos os mais inventivos, poderosos e observadores, falamos, claro está, dos olhos da mente, aqueles que se abrem quando os outros, os da cara, se fecham, e, dessa forma, velada mas ao mesmo tempo atenta e desperta, o homem percorreu novamente as ruas de Maputo, Lourenço Marques antiga, a marginal, as vistas da praia, e as largas e desgastadas avenidas dos ídolos marxistas e comunistas, tal como dos heróis da revolução, eles também a tiveram, e durou muitos anos, foi muito mais violenta, ainda dura e, desse sangue derramado, dessa torrente de miséria e violência ainda se ouvem os gritos naquelas ruas perdidas, naqueles recantos africanos ainda ecoam as súplicas de quem sofreu aquilo que é insofrível, de quem passou o inimaginável. E esse inimaginável é humano. E está ali. E sente-se. E aquele homem sentia-o. E talvez sentindo o que nunca poderia imaginar sentir, conseguisse vir a descobrir aquilo que nunca havia descoberto: a raiz das suas próprias angústias.
(Cont.)
quinta-feira, 14 de abril de 2011
ELE VEM AÍ
O grande Larry David está de volta com o fantástico Curb Your Enthusiasm. A expectativa é elevadíssima depois de na última temporada ter conseguido reunir o elenco de Seinfeld para um reencontro absolutamente brilhante. Já aqui disse e reafirmo: Larry David é o maior génio da comédia televisiva dos últimos vinte anos (entrevista dele aqui): quem mais pode dizer que revolucionou a comédia na televisão duas vezes em duas décadas? Seinfeld e Curb Your Enthusiasm são sem dúvida revolucionários, cada um no seu tempo. Seinfeld foi o exemplo pioneiro de que é possível fazer comédia dentro das personagens, das suas manias e idiossincrasias e, melhor ainda, dentro das suas cabeças ao lidar com as mais banais questões do quotidiano nova-iorquino. A aliança David - Seinfeld será, sem dúvida, uma das mais bem sucedidas de sempre e um marco na história da televisão. Já Curb Your Enthusiasm continua a revolução indo mais longe: filmado em estilo documental, com apenas uma câmera e praticamente sem guião escrito, aposta no improviso como forma de elevar ao ridículo as mesmas manias e observações que George Costanza tão bem explanava em Seinfeld. Aliás, o génio de David comprova-se mesmo por, em 1989, na NBC (o arauto do main stream televisivo) querer produzir e escrever Seinfeld tal como faz hoje com Curb Your Enthusiasm. Claramente à frente do seu tempo e, felizmente, capaz de fazer o nosso tempo encontrar-se com o dele. Um último ponto salta à atenção: além de uma qualidade assinalável, os êxitos de Larry David consagram-se de igual forma como casos de longevidade televisiva. E sempre a manter o nível. A brincar a brincar o criador do chamado 'momento Larry David' (o embaraço puro) depois de nove anos de Seinfeld já vai com oito de Curb Your Enthusiasm. A não perder. Em Julho.
MANIFESTO PARA O CONSERVADORISMO LIBERAL SEGUNDO A TEORIZAÇÃO DA LIBERDADE
A liberdade política é uma tensão permanente entre a vontade do indivíduo de se exprimir e a necessidade de o colectivo conter esses mesmos indivíduos por forma a que todos tenham as mesmas liberdades. Não há volta a dar a isto. Significa isto que garantir a liberdade exige do indivíduo, com igual importância, tanto a defesa contra os atropelos da sua esfera pessoal por parte do colectivo bem como a aceitação de limites na sua acção para com os outros; não há, portanto, uma fórmula secreta, um plano perfeito, um esquema visionário que resolva o problema. Pelo contrário: é um desafio permanente de todos os indivíduos porque a tensão entre eles e os outros é, enquanto vivendo em grupo, uma constante. Assim sendo, sem um guião, resta-nos o desafio eterno de, a cada momento, construirmos a liberdade que queremos. Umas vezes as sociedades, com medo (instinto securitário) ou pelo medo (totalitarismo), apostam mais no colectivo e os muitos subjugam-se a uns poucos; outras vezes, com confiança, os indivíduos, fartos de subjugação e crentes nas suas capacidades, plenos de vontade, agarram o destino pelos cornos e, pelas suas próprias mãos, chamam a si mesmos o direito de decidirem sobre a sua própria vida. A História mostra-nos que os períodos de medo, subjugação e colectivização, porque nenhuma organização pode exceder a imaginação do seu criador (Hayek), são períodos de menor riqueza e de menor felicidade; limita-se ao plano pré-definido de quem controla a sociedade. Pelo contrário, períodos de maior liberdade são os períodos de maior abastança, maior felicidade e maior desenvolvimento porque, libertos de um plano pré-definido, sobra o desígnio de quebrar as barreiras do possível. A sociedade espontâneamente criada pela livre interacção dos indivíduos que a compõem, sem ser limitada pela vontade de um chefe, dirige-se para onde for melhor a cada momento e resolve, a cada instante, da melhor forma que encontrar os problemas que naturalmente enfrentará. A única forma de estar preparado para os problemas que não conhecemos nem controlamos é perceber que não há plano algum que garanta a resolução de todas as dificuldades futuras ou que assuma que o momento actual em que vivemos é o último degrau da experiência humana e que, por tal facto, this is it, chegados aqui nada de novo haverá e a solução para o momento é uma solução para eternizar. Deixar o futuro em aberto implica deixar à sociedade, por si própria, a cada indivíduo por si próprio, criar o seu próprio destino. Sou, por estas razões, um liberal. Mas não um libertário: a sociedade, se bem que com o devido ênfase no indivíduo, não pode dispensar de forma alguma o colectivo. E na ausência de um plano para definir a fronteira desta permanente e eterna tensão sobra-nos o bom senso. Nas palavras de S. Francisco de Assis, precisamos de ter força para mudar o que pode ser mudado - defender o que é nosso -, resignação para aceitar o que não pode ser mudado - vivermos em grupo - e sabedoria para compreender a diferença. O tal bom senso, portanto. Ter a coragem de confiar no bom senso casuístico dos homens e não impor um plano fadado ao insucesso que ambiciona dar resposta ao dilema humano é a receita dos conservadores. O dilema humano é insolúvel por decreto, cabe a cada um descobrir a sua pequena e única chave da felicidade e aqueles que anunciam um mundo sem dificuldades e um futuro radiante de felicidade para todos ou são ignorantes acerca da natureza humana ou pretendem, através da mentira, persuadir os preguiçosos e os medrosos a abdicar da sua própria responsabilidade no seu destino individual em nome de facilidades que não existem. Em suma: falar verdade, confiar nas pessoas e não nos chefes providenciais, desconfiar dos planos milagrosos, ser prudente, deixar as opções colectivas em aberto para as escolhas individuais e assumir que, em última instância, numa sociedade de pessoas igualmente livres, o resultado dos esforços de cada um é o que define o sucesso ou o insucesso na vida. E que aquilo que uns consideram sucesso não quer forçosamente significar que todos o considerem também. Em duas palavras? Liberdade e responsabilidade. Hélas, o conservadorismo liberal.
quarta-feira, 13 de abril de 2011
DÚVIDA
E se Deus for apenas a entidade mais solitária delas todas, una e única portanto, e, num ensejo de esquizofrénica ansiedade, se dividir numa multiplicidade infinita de ilusórias identidades - desde a mais ínfima bactéria até ao mais complexo humanóide - que, confrontando-se como que num bailado universal, não servem para mais nada além do que apaziguar a divina solitude? E se a solidão que nos assola a todos não for mais do que o eco da solidão suprema primordial? E se este vazio que sentimos não for nada mais além do que a evidência de que não existimos de facto mas, sim, que somos apenas o resultado de uma imaginação fértil, como que a de um louco encerrado e selado num solitário hospício vazio e abandonado, para quem nada mais sobra além das personagens imaginárias que resultam das suas insanas maquinações, as únicas coisas com que se entretém enquanto aguenta o crivo da cruel passagem do tempo?
terça-feira, 12 de abril de 2011
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VI)
Depois de várias investidas dos vendedores, estes acabaram por desistir, deixando em paz o homem que, corado do calor, com ar sonhador e meio ausente, se entretinha com o seu gin tónico, remédio de males futuros, mais vale prevenir que remediar, o gin tónico é detentor de uma boa dose de água tónica, entenda-se água pulverizada com sulfato de quinina, esse alcalóide de gosto amargo com funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas, o harmonioso conjunto de vinte moléculas de carbono, vinte e quatro de hidrogénio, duas de nitrogénio e outras duas de oxigénio. Com tantas moléculas de génios, não será de mau gosto notar a genialidade da obra divina, isto realmente dá para tudo, até para espalhar estereoisómeros de quinidina por esses trópicos fora, é também por aí que anda a malária, pérfida e vil doença que voa à boleia do mosquito, é curioso que onde haja a doença logo se descobre por intrincados e complexos métodos algo que a cura, é o jogo da vida, o do gato e do rato, ou o do medo e da esperança, assim vamos nós, com medo do que nos mata e a rezar pelo que nos salva, talvez um dia possamos perder o medo, afinal, como acabámos de ver, não há mal sem remédio, não há doença sem cura, não há portanto medo sem esperança. E quando, como é este o caso, falamos, claro, do gin tónico, o remédio sabe bem porque é fresco para matar a sede mas é também seco para matar a humidade, assim o melhor é prevenir mesmo, então na esplanada enquanto se descansa ao final da tarde a sonhar com o que se teve ou que se quer vir a ter, melhor ainda, juntam-se as eternas comadres tão difíceis de se encontrarem, falamos claro do útil e do agradável, juntam-se os dois à esquina a tocar a concertina e gera-se um momento puro, daqueles que se alongam por vários momentos, daqueles que nos levam um sorriso à boca, o calor, o frenesim africano ora acima ora abaixo naquela rua, as flores das acácias, tudo misturado, tudo diluído num único momento, numa única sensação. Ora, os momentos já toda a gente sabe que são como a economia, impera a lei da oferta e da procura, aquilo que muito é procurado e pouco é oferecido é muito raro, logo de valor elevado e, assim, estes raros momentos em que o útil e o agradável dão as mãos e descansam lado a lado são momentos muito valiosos que ninguém se pode dar ao luxo de desperdiçar. Pelo contrário. Bebem-se, saboreiam-se e engolem-se, faz-se como a comida, que não haja nenhum equívoco, aquilo que se engole passa a fazer parte de nós, a digestão trata de enviar os nutrientes para o sangue, já a digestão dos momentos, essa igualmente fundamental tarefa, trata de enviar os momentos para a memória ou para o esquecimento, peneira-os no acto da decisão, e que ninguém se esqueça que da mesma forma como não se vive sem nutrientes sanguíneos, também ninguém sobrevive sem uma sã memória, pejada de boas recordações, cheia de grandes momentos, momentos como este que aquele homem vive agora. Nesta cidade, por enquanto, sem nome, aquele homem, por enquanto sem nome, perdia-se numa estranha dialéctica: por alguma razão aquela energia que imana do livre resfolegar das pessoas, como naquelas que se acotovelam em passeios europeus, ali era diferente. Ele procurava-a mas não a encontrava. Eram outras pessoas. Outros anseios. Outros passeios. E, por esta razão, simples e estranha, aquele homem sentia-se perdido. Estava noutro mundo, um mundo que não conhecia, um mundo que não dominava e ao qual não se conseguia ligar. Estava de fora. Excluído. Um atento observador que caminhava naquela peculiar realidade como uma leve e espraiada alma penada, um fantasma do futuro ou do passado, um espírito incorpóreo, um elemento arredio e esquivo a tudo o que o rodeava. E estranho era o efeito de tal situação: quando tudo o que nos rodeia parece exterior, quando não nos inserimos onde estamos inseridos, antítese pleonástica, quando tal misteriosa e enigmática situação nos atinge, a pergunta que nos aflora o nosso perturbado cérebro acaba sempre por ser a eterna e insatisfeita questão da identidade, quem somos nós, quem sou eu, o que sou eu que ando aqui diferente, à parte, de fora, alheio e estrangeiro a tudo e todos. Aquele homem estava desconectado. E tentava enlevar-se no conforto ilusório daquele gin tonificado. Tirava satisfação daquele momento. O que só lhe turvava a medida do seu sonho, o desincorporava ainda mais daquele filme africano e o elevava a um desconhecido olimpo de ébano, um olimpo mental, meditativo e de contemplação, sobre o misterioso filme que se desenrolava à frente dos seus olhos, da sua mente, e, também, sobre ele próprio, porque se estava desligado da realidade envolvente então, evidentemente, sobrava a sua realidade imanente, a sua identidade, o seu eu; e ele contemplava-o, com felicidade, afinal fora exactamente a procura da sua identidade que levara aquele homem àquelas terras, à fuga, à aventura, à descoberta do mundo, o seu e o dos outros, à descoberta da alma, à descoberta de si próprio.
(cont.)
362
Ainda me lembro do miúdo que tinha três dias preferidos num ano que motivavam a maior das felicidades e excitações; a saber: a véspera e o dia de Natal e o dia de aniversário. A pouco e pouco, paulatinamente, o tempo e a vida foram-me roubando a satisfação que essas ocasiões me ofereciam. Sobra-me a ilusão de que, na ausência de particular satisfação - muito pelo contrário, aliás - por tais dias implica-se uma maior satisfação pelas restantes trezentas e sessenta e duas datas do ano. Atentem bem: eu disse ilusão.
PARA ALÉM DO BEM E DO MAL; A HIPOCRISIA
"No mundo actual é cada vez mais evidente que toda e qualquer visão do mundo é estética, e que a pessoa humana nada tem a opor à arregimentação, ao conformismo, à nivelação, senão a sua própria existência que, criticamente, se forma e se define, ainda que mutavelmente, não nas suas relações de aderência ou de oposição a um determinado conjunto de valores dominantes, socialmente impostos ou reconhecidos como válidos (qual antigamente acontecia), mas na consciência de que nenhum sistema de valores é válido que não na pessoal verificação a que seja submetido e em que seja livremente aceite ou recusado. Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito que qualquer vida humana; e, se acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal ponto eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se. Não é no romântico regresso à Natureza que o homem se reencontrará, como também não na busca de um mundo em que, aqui ou algures, o seu ser se dissolva. Nós somos animais que negam e sublimam a crueldade feroz e irresponsável do que se chama Natureza; e seremos humanos na medida em que o amoralismo dela se faça em nós uma liberdade em que o morder e devorar não seja mais do que carícia. (...) O mal não se perpetua senão no pretender-se que não existe, ou que, excessivo para a nossa delicadeza, há que deixá-lo num discreto limbo. É no silêncio e no calculado esquecimento dos delicados que o mal se apura e afina - tanto assim é, que é tradicional o amor pelas tiranias pelo silêncio, e que as Inquisições sempre só trouxeram à luz do dia as suas vítimas, para assassiná-las exemplarmente."
Jorge de Sena, Os Grão-Capitães, Prefácio (1971)
Jorge de Sena, Os Grão-Capitães, Prefácio (1971)
quinta-feira, 7 de abril de 2011
O GRANDE DESAFIO: MENOS ESTADO, MAIS LIBERDADE
A esquerda Portuguesa continua a acreditar que, desde que eleito democraticamente, todo o poder é legítimo. Acreditam que o problema reside sempre em quem governa: se quem governar for uma pessoa de bem então a governação será boa. A falácia desta visão é que a questão não é tanto sobre quem governa mas muito mais sobre como limitar o poder de quem governa: de que nos serve eleger o poder se este for absoluto, interferir negativamente nas nossas vidas e der cabo das boas condições políticas, económicas e sociais? A democracia eleitoral não basta - o PCP tem dúvidas se a Coreia do Norte não será uma democracia -, é forçoso limitar o poder de quem manda. A única garantia de liberdade é que o poder político, independentemente de quem o exerça, seja um poder limitado. Um poder pouco limitado ou escrutinado, por melhores que sejam as intenções - e está por provar que se possa confiar na bondade dos governantes, muito pelo contrário - representa um perigo: uma má governação poderá ter um impacto devastador. Já com um poder limitado, reduzido e fiscalizado, diminui-se as possibilidades de má governação e, a acontecer esta, as consequências serão muito menores. Aquilo que falha em Portugal é precisamente o triunfo do socialismo que, representando a visão oposta àquela que aqui se exprime, resulta inexoravelmente num poder estatal pouco escrutinado, ilimitado e demasiado abrangente à sociedade. Este poder, ao interferir (impostos, directivas, burocracia, etc.) na vida das pessoas tolhe-as, paralisa-as porque cria a ilusão de que o destino colectivo (a felicidade) se decide por decreto governamental e não pelo esforço e o mérito individual de cada um. Tirar a quem trabalha e mais produz para esbanjar em serviços inoperantes, mal geridos e que apenas prejudicam a igualdade de oportunidades, é uma dupla forma de limitação de liberdades: limita-se a liberdade de quem produz porque se retira o produto dessa produção; limita-se a liberdade dos que mais precisam porque não se garante uma efectiva igualdade de oportunidades. É preciso compreender que mantendo-se a estrutura governante e estatal, escolher quem governa nestas circunstâncias é absolutamente irrelevante pois acaba por ser apenas escolher quem ocupa posições numa estrutura que, ela própria, é perversa à democracia e impeditiva do sucesso económico e social do nosso país. Por isso é preciso ir mais longe, muito mais longe mesmo, é preciso escolher quem vá efectivamente alterar o sistema. É preciso forçosamente libertar a sociedade do Estado porque, pura e simplesmente, mais tarde ou mais cedo gastar sem produzir (a grande promessa socialista) leva - como se vê - à falência. Ou seja: a bem ou a mal vamos mesmo ter que mudar de vida. Utilizar esta crise como uma forma de efectivamente reformar o Estado, garantir que Portugal possa trilhar o rumo dos países mais desenvolvidos - e ricos - do mundo e oferecer uma efectiva igualdade de oportunidades aos mais desfavorecidos (oportunidades igualmente miseráveis de nada servem) é imperioso. Libertar a sociedade do Estado significa, a prazo, maior produtividade, mais riqueza e mais oportunidades para todos, principalmente para aqueles que nada ou pouco têm. A grande falácia do nosso socialismo está, essencialmente, na ideia de que este existe para proteger os fracos e oprimidos quando aquilo que entra pelos olhos dentro é que apenas mantém o actual status quo onde são uns poucos que muito têm e uns muitos que muito pouco têm. Libertar a sociedade do Estado implica oferecer, em troco do trabalho e do mérito, a verdadeira oportunidade de subir na vida e de cada um ser responsável pela sua própria felicidade. E isto a esquerda não consegue compreender e muito menos fazer. E a direita tem que perceber que, dada a gravidade da situação, esta é a sua última oportunidade: é toda uma geração que está em jogo.
DO APARELHO
As hostes agitam-se com a volúpia de quem sente que consegue chegar com os dedos ao pote; são as hostes da desgraça: o pote está vazio e os lambuzadores ainda não compreenderam que a única saída é fechar o pote, guardá-lo como um tesouro e arregaçar as mangas. Acabou-se a festa.
quarta-feira, 6 de abril de 2011
É A VIDA
Pequenos homens com grandes ambições tendem a olhar demasiado para cima e a não ver aquilo que está mesmo em frente dos seus olhos. E depois tropeçam.
NA MESMA COMO A LESMA
"Uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porém, como as anteriores, viva maré dum instante, e refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indemnes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum carácter moral excepcionalíssimo.
E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares, tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc., etc., - teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.
(...)
O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria resume-se quase numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não gera o messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai dissolvendo-o em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza".
Guerra Junqueiro, Pátria; 1896
E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares, tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc., etc., - teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.
(...)
O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria resume-se quase numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não gera o messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai dissolvendo-o em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza".
Guerra Junqueiro, Pátria; 1896
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