sábado, 30 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (X)

Longe vão os tempos daquela sexta-feira, treze de Outubro de mil trezentos e sete, dia azarado para Jaques de Molay, Grão Mestre da Ordem dos Templários, que se viu a si próprio preso por acusações de heresia
tal como a maior parte dos seus correligionários
por ordem do Rei Felipe IV, o Belo, e do Papa Clemente V, este de clemente tinha muito pouco. Haveria de, passados uns tempos, enquanto ardia na fogueira, o infortunado líder dos Templários amaldiçoar aqueles que o prenderam, e de facto assim foi, no prazo de um ano tanto o papa como o rei foram deste para o outro mundo deixando para trás a noção de que das sextas-feiras treze coisa boa não haveria de vir para ninguém. Talvez por isso estes particulares dias treze, ou por outro lado, estas particulares sextas-feiras sejam alvo de tanto temor, o António não acreditava nisso, até ao dia, diriam os que acreditam, até ao dia, diriam os que tinham medo, e foi mesmo, foi até ao dia em que o Sr. Crispim, naquela sexta-feira treze em particular, lhe telefonou com a voz embargada a dizer que o Honório, homem honrado e exemplo para todos, estava internado no hospital após um terrível ataque do coração, em coma se encontrava, foi muito grave, muito grave mesmo, tão grave que as esperanças eram nulas, estava por horas.
Foi até esse dia porque foi nesse dia que não caiu o Carmo e a Trindade, mas caíram muitas outras coisas, coisas que os humanos não vêem, só sentem. Foi até esse dia porque depois de se viver um dia assim, todos os outros dias são dias diferentes. Foi até esse dia porque a seguir não há mais dias como dantes. Foi até esse dia porque para todo o sempre esse dia seria Aquele dia, o dia em que tudo se foi e tudo se virou, ou seja, o dia pior de todos os dias, o dia pior de todos os que o antecederam e pior de todos os que lhe sucederam. Foi o pior dia da vida do António. Ponto final. Só ele e todos aqueles que por semelhante coisa passaram conhecem a sensação de frio, triste, gélido e cortante frio, sentimento petrificante e horroroso, tenebroso temor este, coisa monstruosa que nasce do ponto mais baixo da espinal medula e envenenando todos os nervos que a ela estão ligados, vai subindo imparável e inapelavelmente até ao coração, aos pulmões,
é difícil respirar
ao cérebro,
é difícil pensar
à alma,
é difícil viver
o impensável acontecera, ò Meu Deus, não, não, não me faças isso, não lhe faças isso, não nos faças isso, não, não e não. Gritos silenciosos porque a voz não fala, não se consegue ou não se quer, gritos molhados porque o balde de tudo o que é sentimento se entorna, escorre, volta a encher-se e volta a entornar-se, uma, duas, três e mais vezes, para sempre estará meio cheio, sempre estará até ao fim dos seus dias cheio da mágoa e da tristeza daquilo que ainda não tendo acontecido o António soube imediatamente que iria acontecer.  Gritos de dor, angústia e de tristeza, da mais pura das tristezas, daquela tristeza que nos muda o olhar, nos traz uma nova expressão de preocupação, uma expressão que irá connosco para a cova porque todos os dias a exprimiremos e de tanto o fazermos ficará marcada no rosto como uma cicatriz da guerra, uma marca de água, um sinal da erosão dos tempos, ainda depois de mortos o nosso rosto, lido e estudado pelos vivos, dirá, este homem sofreu, pode até ter sido feliz mas houve um dia em que sofreu por todos os dias de felicidade que até aí tinha vivido ou que ainda viria a viver. Cicatriz, marca ou corte na alma. Talvez vá connosco para o Além, talvez fique com o que de nós ficar no caixão até deste e de nós não restar mais do que aquela poeira que até os germes rejeitam. Talvez as duas coisas. Talvez se vá com os gritos raivosos do António. Gritos de lamento. Gritos de guerra. Gritos de morte.
O António empalidecia. A chorar, só se quer ir, correr, voar, como é que se está tão longe, ò Meu Deus, eu sabia,
aquele abraço
nunca devia ter vindo, vamos, vamos, vou, tirem-me daqui, a correr para o aeroporto, no primeiro voo
de ligação ou directo
qualquer que seja o preço, tenho de ir para casa, tenho de ver o meu pai enquanto está cá neste mundo, por favor não te vás já, espera por mim, quero um último abraço, um último carinho, um último centímetro do teu amor, quero por uma última e definitiva vez saber com toda a certeza que há alguém neste mundo que me ama, porque certeza do amor como o amor dos pais nunca mais ninguém a há de dar, quero que antes de te ires saibas que te amo, porque não há maior amor do que o amor dos filhos. Espera por mim. Espera. Espera. Espera.
(Cont.)

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