E ele esperou. E o António, um dia depois, mais concretamente vinte e três horas e trinta e sete minutos depois, a correr, tendo voado por cima do oceano, feito escala em Madrid, um António choroso pôde ainda abraçar o seu inconsciente pai. E que abraço foi esse. Um abraço do vivo com o que ainda não morreu, num limbo se encontrava porque nem vivia nem morria, estava ali no meio, num sítio esquisito, algures no espaço e no tempo, mas um espaço e um tempo diferentes do nosso. Foi um abraço que dizia em voz alta para não ires, fica, fica aqui comigo, perdoa-me por ter ido, nunca mais vou, não te vás tu também.
Enxugadas as lágrimas, talvez não seja o melhor termo, talvez tenham petrificado, solidificado congeladas pelo terror da única coisa que é definitiva, talvez os canais lacrimais tenham ficado entupidos. Não se sabe. Talvez a desidratação, espécie de seca interna, morte anunciada, tenha chegado ao António e ele não chorava porque não tinha mais por onde chorar. Talvez o corpo não chorasse mas a sua alma, em sangue, chorasse pelos dois, afinal se pode a alma ter sangue, pode o corpo chorar sem se ver. Misteriosos são os caminhos do mundo, planeta recôndito onde uns poucos andam aos saltos, brincam, crescem, vivem, amam-se, detestam-se e depois, uns míseros anos depois, morrem, decompõem-se, esvaem-se para algum lugar, um outro lugar. Ou para lugar nenhum. Ninguém sabe, e que terrível condição esta de se dar um abraço sem se saber se é um até já ou um até sempre. Quando alguém vai podemos sempre perguntar, quando voltas, vens tarde ou vens jantar, mas quando se vai, quando se vai e não se volta, não sabemos nós se quando formos vamos ou não encontrarmo-nos outra vez, não sabemos se esse alguém vai ou se simplesmente foi. Mistérios da vida. Mistérios da morte. Não faz a vida sentido sem a morte, não faz a morte sentido pura e simplesmente.
Num mundo sem sentido, onde as lágrimas secam mesmo quando são eternas, tudo é complexo, tudo é triste, tudo é infelicidade quando estamos infelizes, tudo é feliz quando estamos felizes. Subjectividades do Homem, coisas das emoções, nesta altura nada seria bom para o António, nada que não fosse uma espécie de lazarificação de seu pai, que se levantasse e andasse como o outro, que isto fosse um pesadelo, que ele acordasse, o quer que fosse, não interessava, só queria que seu pai vivesse, ainda era tão novo, então e aquela marisqueira que querias fazer comigo, bolas, vamos a isso, uma marisqueira contigo, como foi que eu não quis, que estúpido, que ingrato, deste-me tudo e eu não te dei nada.
Complicada a consciência, retorcido o remorso. De repente, o culpado quase que era o António, não tinha cumprido com as suas obrigações, tinha falhado, e agora como é que haveria de remediar a situação. Tristes os humanos que perante o inevitável ainda tentam o impossível, só sairão desiludidos, mas assim é o espírito e o engenho do Homem, a esperança é a última a morrer, só esperemos nós que o António não a gaste toda, afinal ainda é miúdo novo, tem muito para viver e muito que esperar.
Passaram-se horas sem que nada acontecesse, ainda bem, ainda mal, não se sabe, se a única coisa que se esperava que pudesse acontecer era o inevitável, então ainda bem que não acontecia nada, ali naquela posição esperaria o António para sempre, ali ficaria até à sua própria eternidade se isso significasse que o pai não se ia, horrível situação aquela de quem cá fica, egoísmo da separação, talvez não tanto, afinal era ele também que se ia embora, era parte do seu coração, da sua alma, de si, era tudo isso que também ia e ninguém gosta de perder assim tanto.
E foi de repente que algo aconteceu. Primeiro um leve tremer que nem o mais potente de todos os sismógrafos acusaria, um tremer que só quem tremia também poderia sentir. Depois um breve tremelique numa pálpebra esquerda, seguido de mais um na direita. E depois o impossível aconteceu e Honório, homem de honra e do trabalho, talentoso contador de estórias, antigo barbeiro e novo empregado de restaurante, mais do que tudo isso, Honório, pai de António, abriu os olhos e viu. Visão sagrada, se haveria coisa que ele quereria ver pela última vez neste mundo seria precisamente aquilo que via agora, a cara de seu filho, o seu mais que tudo, semente da sua semente, o seu maior feito, o seu legado a este mundo porque dos seus outros legados nunca mais ele tinha ouvido falar, legado à Humanidade, legado aos outros, legado a si próprio porque a única razão que poderia justificar a sua existência era precisamente aquele último rebento, o renegado dos renegados, aquele que àquela lareira no Vimieiro com ele tinha chorado também.
Se a espinal medula serve para transportar horrores não deixará igualmente de servir para transportar grandes felicidades e não haverá certamente palavras suficientes no alfabeto português
como em qualquer outro
para explicar o que sentiu o António com tal acordar, a esperança não tinha morrido, renascia agora com ainda mais força, é um milagre, se ainda não o é vai ser de certeza. Foi com comoção e grande choradeira, choradeira contida, silenciosa, mas claro sinal de que mais lágrimas ainda havia por sair pelos olhos, que o António viu seu pai apertar-lhe a mão e com grande dificuldade, parecia que o peso da morte lhe esmagava o peito, tentar falar. António pediu desculpa, disse-lhe o quanto o amava, que não devia ter ido, que devia ter ficado, que nunca mais iria a lado algum, desculpa quando me portei mal, desculpa quando te menti, desculpa por tudo, tu és a pessoa mais importante na minha vida, vais ficar melhor, não te preocupes, força, não fales, descansa porque vais te pôr bom, e foi aí que o abraçou, um abraço cuidadoso porque o pai estava frágil mas um abraço com toda a força da alma, e se o Homem pode muita coisa, pode porque a alma é grande, imensa e infinita e foi precisamente com essa força imensa e infinita da alma, com a força grande e invencível do amor que o António abraçou o seu pai, abraçou-o como se não houvesse mais abraços, situação extrema, tragédia constante, assim seria, aquele seria o último abraço em vida de seu pai. Sorte ainda o capricho da vida ter permitido tal coisa, sorte porque a morte é muito pior quando há coisas que ficam por dizer, desse fardo se livrou o António e desse fardo também se livrou o Honório porque não se foi sem que antes, trémulo e balbuciante, dissesse entredentes e com grande dificuldade, força filho, amo-te muito, desejo-te toda a sorte do mundo, toda a sorte do mundo, que Deus te proteja,
coisa mais bonita que esta não há
foi com este desejo que o Honório partiu, para onde já ninguém sabe, nem ninguém virá a saber.
(Cont.)
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