terça-feira, 12 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VI)

Depois de várias investidas dos vendedores, estes acabaram por desistir, deixando em paz o homem que, corado do calor, com ar sonhador e meio ausente, se entretinha com o seu gin tónico, remédio de males futuros, mais vale prevenir que remediar, o gin tónico é detentor de uma boa dose de água tónica, entenda-se água pulverizada com sulfato de quinina, esse alcalóide de gosto amargo com funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas, o harmonioso conjunto de vinte moléculas de carbono, vinte e quatro de hidrogénio, duas de nitrogénio e outras duas de oxigénio. Com tantas moléculas de génios, não será de mau gosto notar a genialidade da obra divina, isto realmente dá para tudo, até para espalhar estereoisómeros de quinidina por esses trópicos fora, é também por aí que anda a malária, pérfida e vil doença que voa à boleia do mosquito, é curioso que onde haja a doença logo se descobre por intrincados e complexos métodos algo que a cura, é o jogo da vida, o do gato e do rato, ou o do medo e da esperança, assim vamos nós, com medo do que nos mata e a rezar pelo que nos salva, talvez um dia possamos perder o medo, afinal, como acabámos de ver, não há mal sem remédio, não há doença sem cura, não há portanto medo sem esperança. E quando, como é este o caso, falamos, claro, do gin tónico, o remédio sabe bem porque é fresco para matar a sede mas é também seco para matar a humidade, assim o melhor é prevenir mesmo, então na esplanada enquanto se descansa ao final da tarde a sonhar com o que se teve ou que se quer vir a ter, melhor ainda, juntam-se as eternas comadres tão difíceis de se encontrarem, falamos claro do útil e do agradável, juntam-se os dois à esquina a tocar a concertina e gera-se um momento puro, daqueles que se alongam por vários momentos, daqueles que nos levam um sorriso à boca, o calor, o frenesim africano ora acima ora abaixo naquela rua, as flores das acácias, tudo misturado, tudo diluído num único momento, numa única sensação. Ora, os momentos já toda a gente sabe que são como a economia, impera a lei da oferta e da procura, aquilo que muito é procurado e pouco é oferecido é muito raro, logo de valor elevado e, assim, estes raros momentos em que o útil e o agradável dão as mãos e descansam lado a lado são momentos muito valiosos que ninguém se pode dar ao luxo de desperdiçar. Pelo contrário. Bebem-se, saboreiam-se e engolem-se, faz-se como a comida, que não haja nenhum equívoco, aquilo que se engole passa a fazer parte de nós, a digestão trata de enviar os nutrientes para o sangue, já a digestão dos momentos, essa igualmente fundamental tarefa, trata de enviar os momentos para a memória ou para o esquecimento, peneira-os no acto da decisão, e que ninguém se esqueça que da mesma forma como não se vive sem nutrientes sanguíneos, também ninguém sobrevive sem uma sã memória, pejada de boas recordações, cheia de grandes momentos, momentos como este que aquele homem vive agora. Nesta cidade, por enquanto, sem nome, aquele homem, por enquanto sem nome, perdia-se numa estranha dialéctica: por alguma razão aquela energia que imana do livre resfolegar das pessoas, como naquelas que se acotovelam em passeios europeus, ali era diferente. Ele procurava-a mas não a encontrava. Eram outras pessoas. Outros anseios. Outros passeios. E, por esta razão, simples e estranha, aquele homem sentia-se perdido. Estava noutro mundo, um mundo que não conhecia, um mundo que não dominava e ao qual não se conseguia ligar. Estava de fora. Excluído. Um atento observador que caminhava naquela peculiar realidade como uma leve e espraiada alma penada, um fantasma do futuro ou do passado, um espírito incorpóreo, um elemento arredio e esquivo a tudo o que o rodeava. E estranho era o efeito de tal situação: quando tudo o que nos rodeia parece exterior, quando não nos inserimos onde estamos inseridos, antítese pleonástica, quando tal misteriosa e enigmática situação nos atinge, a pergunta que nos aflora o nosso perturbado cérebro acaba sempre por ser a eterna e insatisfeita questão da identidade, quem somos nós, quem sou eu, o que sou eu que ando aqui diferente, à parte, de fora, alheio e estrangeiro a tudo e todos. Aquele homem estava desconectado. E tentava enlevar-se no conforto ilusório daquele gin tonificado. Tirava satisfação daquele momento. O que só lhe turvava a medida do seu sonho, o desincorporava ainda mais daquele filme africano e o elevava a um desconhecido olimpo de ébano, um olimpo mental, meditativo e de contemplação, sobre o misterioso filme que se desenrolava à frente dos seus olhos, da sua mente, e, também, sobre ele próprio, porque se estava desligado da realidade envolvente então, evidentemente, sobrava a sua realidade imanente, a sua identidade, o seu eu; e ele contemplava-o, com felicidade, afinal fora exactamente a procura da sua identidade que levara aquele homem àquelas terras, à fuga, à aventura, à descoberta do mundo, o seu e o dos outros, à descoberta da alma, à descoberta de si próprio.
(cont.)

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