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sábado, 30 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (XI)

[Este pressupõe mesmo a leitura disto primeiro]


E ele esperou. E o António, um dia depois, mais concretamente vinte e três horas e trinta e sete minutos depois, a correr, tendo voado por cima do oceano, feito escala em Madrid, um António choroso pôde ainda abraçar o seu inconsciente pai. E que abraço foi esse. Um abraço do vivo com o que ainda não morreu, num limbo se encontrava porque nem vivia nem morria, estava ali no meio, num sítio esquisito, algures no espaço e no tempo, mas um espaço e um tempo diferentes do nosso. Foi um abraço que dizia em voz alta para não ires, fica, fica aqui comigo, perdoa-me por ter ido, nunca mais vou, não te vás tu também.
Enxugadas as lágrimas, talvez não seja o melhor termo, talvez tenham petrificado, solidificado congeladas pelo terror da única coisa que é definitiva, talvez os canais lacrimais tenham ficado entupidos. Não se sabe. Talvez a desidratação, espécie de seca interna, morte anunciada, tenha chegado ao António e ele não chorava porque não tinha mais por onde chorar. Talvez o corpo não chorasse mas a sua alma, em sangue, chorasse pelos dois, afinal se pode a alma ter sangue, pode o corpo chorar sem se ver. Misteriosos são os caminhos do mundo, planeta recôndito onde uns poucos andam aos saltos, brincam, crescem, vivem, amam-se, detestam-se e depois, uns míseros anos depois, morrem, decompõem-se, esvaem-se para algum lugar, um outro lugar. Ou para lugar nenhum. Ninguém sabe, e que terrível condição esta de se dar um abraço sem se saber se é um até já ou um até sempre. Quando alguém vai podemos sempre perguntar, quando voltas, vens tarde ou vens jantar, mas quando se vai, quando se vai e não se volta, não sabemos nós se quando formos vamos ou não encontrarmo-nos outra vez, não sabemos se esse alguém vai ou se simplesmente foi. Mistérios da vida. Mistérios da morte. Não faz a vida sentido sem a morte, não faz a morte sentido pura e simplesmente.
Num mundo sem sentido, onde as lágrimas secam mesmo quando são eternas, tudo é complexo, tudo é triste, tudo é infelicidade quando estamos infelizes, tudo é feliz quando estamos felizes. Subjectividades do Homem, coisas das emoções, nesta altura nada seria bom para o António, nada que não fosse uma espécie de lazarificação de seu pai, que se levantasse e andasse como o outro, que isto fosse um pesadelo, que ele acordasse, o quer que fosse, não interessava, só queria que seu pai vivesse, ainda era tão novo, então e aquela marisqueira que querias fazer comigo, bolas, vamos a isso, uma marisqueira contigo, como foi que eu não quis, que estúpido, que ingrato, deste-me tudo e eu não te dei nada.
            Complicada a consciência, retorcido o remorso. De repente, o culpado quase que era o António, não tinha cumprido com as suas obrigações, tinha falhado, e agora como é que haveria de remediar a situação. Tristes os humanos que perante o inevitável ainda tentam o impossível, só sairão desiludidos, mas assim é o espírito e o engenho do Homem, a esperança é a última a morrer, só esperemos nós que o António não a gaste toda, afinal ainda é miúdo novo, tem muito para viver e muito que esperar.
Passaram-se horas sem que nada acontecesse, ainda bem, ainda mal, não se sabe, se a única coisa que se esperava que pudesse acontecer era o inevitável, então ainda bem que não acontecia nada, ali naquela posição esperaria o António para sempre, ali ficaria até à sua própria eternidade se isso significasse que o pai não se ia, horrível situação aquela de quem cá fica, egoísmo da separação, talvez não tanto, afinal era ele também que se ia embora, era parte do seu coração, da sua alma, de si, era tudo isso que também ia e ninguém gosta de perder assim tanto.
E foi de repente que algo aconteceu. Primeiro um leve tremer que nem o mais potente de todos os sismógrafos acusaria, um tremer que só quem tremia também poderia sentir. Depois um breve tremelique numa pálpebra esquerda, seguido de mais um na direita. E depois o impossível aconteceu e Honório, homem de honra e do trabalho, talentoso contador de estórias, antigo barbeiro e novo empregado de restaurante, mais do que tudo isso, Honório, pai de António, abriu os olhos e viu. Visão sagrada, se haveria coisa que ele quereria ver pela última vez neste mundo seria precisamente aquilo que via agora, a cara de seu filho, o seu mais que tudo, semente da sua semente, o seu maior feito, o seu legado a este mundo porque dos seus outros legados nunca mais ele tinha ouvido falar, legado à Humanidade, legado aos outros, legado a si próprio porque a única razão que poderia justificar a sua existência era precisamente aquele último rebento, o renegado dos renegados, aquele que àquela lareira no Vimieiro com ele tinha chorado também.
Se a espinal medula serve para transportar horrores não deixará igualmente de servir para transportar grandes felicidades e não haverá certamente palavras suficientes no alfabeto português
como em qualquer outro
para explicar o que sentiu o António com tal acordar, a esperança não tinha morrido, renascia agora com ainda mais força, é um milagre, se ainda não o é vai ser de certeza. Foi com comoção e grande choradeira, choradeira contida, silenciosa, mas claro sinal de que mais lágrimas ainda havia por sair pelos olhos, que o António viu seu pai apertar-lhe a mão e com grande dificuldade, parecia que o peso da morte lhe esmagava o peito, tentar falar. António pediu desculpa, disse-lhe o quanto o amava, que não devia ter ido, que devia ter ficado, que nunca mais iria a lado algum, desculpa quando me portei mal, desculpa quando te menti, desculpa por tudo, tu és a pessoa mais importante na minha vida, vais ficar melhor, não te preocupes, força, não fales, descansa porque vais te pôr bom, e foi aí que o abraçou, um abraço cuidadoso porque o pai estava frágil mas um abraço com toda a força da alma, e se o Homem pode muita coisa, pode porque a alma é grande, imensa e infinita e foi precisamente com essa força imensa e infinita da alma, com a força grande e invencível do amor que o António abraçou o seu pai, abraçou-o como se não houvesse mais abraços, situação extrema, tragédia constante, assim seria, aquele seria o último abraço em vida de seu pai. Sorte ainda o capricho da vida ter permitido tal coisa, sorte porque a morte é muito pior quando há coisas que ficam por dizer, desse fardo se livrou o António e desse fardo também se livrou o Honório porque não se foi sem que antes, trémulo e balbuciante, dissesse entredentes e com grande dificuldade, força filho, amo-te muito, desejo-te toda a sorte do mundo, toda a sorte do mundo, que Deus te proteja,
coisa mais bonita que esta não há
foi com este desejo que o Honório partiu, para onde já ninguém sabe, nem ninguém virá a saber.
(Cont.)

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (X)

Longe vão os tempos daquela sexta-feira, treze de Outubro de mil trezentos e sete, dia azarado para Jaques de Molay, Grão Mestre da Ordem dos Templários, que se viu a si próprio preso por acusações de heresia
tal como a maior parte dos seus correligionários
por ordem do Rei Felipe IV, o Belo, e do Papa Clemente V, este de clemente tinha muito pouco. Haveria de, passados uns tempos, enquanto ardia na fogueira, o infortunado líder dos Templários amaldiçoar aqueles que o prenderam, e de facto assim foi, no prazo de um ano tanto o papa como o rei foram deste para o outro mundo deixando para trás a noção de que das sextas-feiras treze coisa boa não haveria de vir para ninguém. Talvez por isso estes particulares dias treze, ou por outro lado, estas particulares sextas-feiras sejam alvo de tanto temor, o António não acreditava nisso, até ao dia, diriam os que acreditam, até ao dia, diriam os que tinham medo, e foi mesmo, foi até ao dia em que o Sr. Crispim, naquela sexta-feira treze em particular, lhe telefonou com a voz embargada a dizer que o Honório, homem honrado e exemplo para todos, estava internado no hospital após um terrível ataque do coração, em coma se encontrava, foi muito grave, muito grave mesmo, tão grave que as esperanças eram nulas, estava por horas.
Foi até esse dia porque foi nesse dia que não caiu o Carmo e a Trindade, mas caíram muitas outras coisas, coisas que os humanos não vêem, só sentem. Foi até esse dia porque depois de se viver um dia assim, todos os outros dias são dias diferentes. Foi até esse dia porque a seguir não há mais dias como dantes. Foi até esse dia porque para todo o sempre esse dia seria Aquele dia, o dia em que tudo se foi e tudo se virou, ou seja, o dia pior de todos os dias, o dia pior de todos os que o antecederam e pior de todos os que lhe sucederam. Foi o pior dia da vida do António. Ponto final. Só ele e todos aqueles que por semelhante coisa passaram conhecem a sensação de frio, triste, gélido e cortante frio, sentimento petrificante e horroroso, tenebroso temor este, coisa monstruosa que nasce do ponto mais baixo da espinal medula e envenenando todos os nervos que a ela estão ligados, vai subindo imparável e inapelavelmente até ao coração, aos pulmões,
é difícil respirar
ao cérebro,
é difícil pensar
à alma,
é difícil viver
o impensável acontecera, ò Meu Deus, não, não, não me faças isso, não lhe faças isso, não nos faças isso, não, não e não. Gritos silenciosos porque a voz não fala, não se consegue ou não se quer, gritos molhados porque o balde de tudo o que é sentimento se entorna, escorre, volta a encher-se e volta a entornar-se, uma, duas, três e mais vezes, para sempre estará meio cheio, sempre estará até ao fim dos seus dias cheio da mágoa e da tristeza daquilo que ainda não tendo acontecido o António soube imediatamente que iria acontecer.  Gritos de dor, angústia e de tristeza, da mais pura das tristezas, daquela tristeza que nos muda o olhar, nos traz uma nova expressão de preocupação, uma expressão que irá connosco para a cova porque todos os dias a exprimiremos e de tanto o fazermos ficará marcada no rosto como uma cicatriz da guerra, uma marca de água, um sinal da erosão dos tempos, ainda depois de mortos o nosso rosto, lido e estudado pelos vivos, dirá, este homem sofreu, pode até ter sido feliz mas houve um dia em que sofreu por todos os dias de felicidade que até aí tinha vivido ou que ainda viria a viver. Cicatriz, marca ou corte na alma. Talvez vá connosco para o Além, talvez fique com o que de nós ficar no caixão até deste e de nós não restar mais do que aquela poeira que até os germes rejeitam. Talvez as duas coisas. Talvez se vá com os gritos raivosos do António. Gritos de lamento. Gritos de guerra. Gritos de morte.
O António empalidecia. A chorar, só se quer ir, correr, voar, como é que se está tão longe, ò Meu Deus, eu sabia,
aquele abraço
nunca devia ter vindo, vamos, vamos, vou, tirem-me daqui, a correr para o aeroporto, no primeiro voo
de ligação ou directo
qualquer que seja o preço, tenho de ir para casa, tenho de ver o meu pai enquanto está cá neste mundo, por favor não te vás já, espera por mim, quero um último abraço, um último carinho, um último centímetro do teu amor, quero por uma última e definitiva vez saber com toda a certeza que há alguém neste mundo que me ama, porque certeza do amor como o amor dos pais nunca mais ninguém a há de dar, quero que antes de te ires saibas que te amo, porque não há maior amor do que o amor dos filhos. Espera por mim. Espera. Espera. Espera.
(Cont.)

terça-feira, 26 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (IX)

Lembrava agora o António, com saudade,
esse sentimento que é português e não é de mais ninguém
o momento em que se viu enrolado com a Raquel, rapariga bem torneada e de cabelos compridos, bem feita de peito e de rabo, com uns calções de lycra branca e uma apertada t-shirt. Estava-se no, entretanto desertificado, balneário feminino, após a aula de educação física, local para onde a dita rapariga
moça dada aos relacionamentos ocasionais
havia arrastado o António. O nosso amigo nunca foi muito adepto desses encontros de ocasião, os tempos também eram outros é certo, mas sempre lhe agradou mais a difícil conquista da inocência do que a fácil partilha da luxúria. Visão conservadora esta, talvez hoje em dia seja tudo diversão, mas para o António a busca era mais pelo amor do que apenas pelo sexo. Personagem caricata, talvez não
no entanto agora se compreende o porquê da relevância deste episódio
de qualquer forma, personagem caricata ou não, nunca dá um rapaz adolescente uma resposta negativa a uma oportunidade tão flagrante, afinal que mal é que tem, a miúda era gira, muito gira mesmo, está bem que já alguns amigos haviam descrito grandes habilidades sexuais com ela, mas o rapaz tinha protecção, era precavido, e estava cheio de vontade de fazer aquilo que nunca antes havia experimentado.
Não se pode dizer que a importância deste acontecimento esteja directamente relacionada com a grande duração do mesmo. Para sermos honestos e sinceros, a duração não foi muita. A intensidade, essa sim, para o António foi impressionante, mesmo inacreditável. Para a Raquel, pelos esgares eróticos que produziu, grande barulheira ela fez, pareceu ser também grande a intensidade do acontecimento, subentende-se que ou era boa actriz ou então era mulher de orgasmo fácil. Facto indiferente para o António, porque se a mulher resolve fingir o problema é mesmo só dela, não que ao António não importasse satisfazer a Raquel, afinal que bela dádiva ela lhe tinha dado ao desvirginá-lo mas, dizíamos, se a rapariga resolveu fingir, o problema é mesmo só dela porque toda a gente sabe que se uma mulher parece satisfeita a única coisa que com isso diz ao homem é que sim senhor, és um garanhão, fizeste tudo bem, e o pobre coitado, enganado na sua competência, convicto da sua qualidade, não vê mesmo razões nenhumas para mudar nada
em equipa que ganha não se mexe
e quem vai continuar a ficar insatisfeita é mesmo a mulher. Isto se houver segundas núpcias e o certo é que houve, segundas, terceiras, quartas e muitas mais, durou muitos meses e foi precisamente com a Raquel que o António se iniciou nas artes do amor. Talvez seja um cliché falarmos de artes do amor mas a verdade é que é isso que faz sentido porque tudo aquilo que na vida é bonito, único e irreproduzível só pode mesmo ser considerado uma arte.
Não saberemos aqui dizer se foi uma profunda paixão aquilo que o António sentia pela Raquel. Talvez não fosse. No entanto, quando se é adolescente, dos adolescentes mais velhos, aqueles que acham que já sabem tudo, descobrir de repente que se gosta de alguém não dá azo a grandes questões sobre o que é o amor
essas ficam para mais tarde
aquilo que interessava mesmo era que gostavam os dois um do outro e se sentiam bem partilhando aquilo que de mais íntimo há, ou seja, a intimidade do nu, do toque e da carícia. Sejamos, também, honestos para com a rapariga porque não era actriz nenhuma, simplesmente gostava de sexo, gostava do António
não forçosamente por esta ordem de preferências
e muitas e muitas coisas lhe ensinou, daqueles ensinamentos que não se falam, apenas se transmitem, só se sentem, daqueles ensinamentos que parece que vêm de dentro de nós, coisas que mesmo ainda não sabendo parece que afinal já sabíamos. Foi, por tudo isto, com tristeza que o António viu a Raquel mudar de escola
o pai foi transferido
e dela nunca mais o António ouviu falar. Não admira, portanto, que, olhando para trás, para a vida que agora acabava, a Raquel juntamente com a sua boa disposição fosse um peso importante no tal balanço, fundamental mesmo, uma recordação agradável e um acontecimento de grande dimensão que ficaria para sempre na peneira da memória, lembrança de grande felicidade e também marca de alguma tristeza porque da primeira vez nunca se esquece e o António tinha pena da forma abrupta como as coisas tinham acabado. Enfim, assim é a viagem do amor, feliz na partida e triste na chegada.
(Cont.)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VIII)

Sentado na mesa da esplanada da piscina, gozava mais um gin tónico. Já tinha perdido a conta a quantos tinha bebido nesse dia. Talvez uns seis. Cinco? Mais de quatro seguramente. Ao pensar nestas quantificações, acabou por encolher os ombros. Não lhe interessava saber. Para ele a importância residia agora no momento. Nos escombros de uma vida passada, enquanto não assumia uma nova, enquanto permanecia ali no limbo intemporal, nada tinha consequências, nada importava demasiado, nada o afectava. Pairava sobre a realidade, ou pelo menos assim ele o pensava, estranha coisa esta da auto percepção da existência, dá para nos acharmos coisas diferentes das que somos, dá para nos imaginarmos o que
convenhamos
pode ser uma coisa fantástica, aí nascem sonhos e devaneios, aí nascem mundos novos mas,
não esqueçamos
tudo o que é bom tem o seu risco, o seu medo, se podemos imaginar também nos podemos perder. E se andar perdido durante uns tempos até pode ser engraçado, o complicado é se nos perdermos de mais, que é como quem diz se perdermos o caminho de volta para casa. Há quem dela saia com um cordel, daqueles de rija estrutura, preso à porta de casa e atado ao pé ou segurado pela sua ponta por uma mão, e, dessa maneira, segura e séria, passo atrás de passo, com resoluta confiança pode o cauto caminhante seguir o seu percurso ziguezagueante, pode ele ir à vontade porque quando desse sem destino passeio se fartar, bastar-lhe-á dar meia volta, virar, volver e, com toda a calma, seguir o cordel que o liga ao porto seguro do seu ninho. Mas o Lázaro, esse incauto viajante, esse ia sem cordel algum, ia livre como um passarinho, longe da terra que o viu nascer e da outra que o viu crescer e, assim, sabe-se lá onde irá parar e se desse local alguma vez irá regressar. Iludia-se ele a pensar que por menos gins que bebesse nunca estaria completamente sóbrio tal como por mais que bebesse nunca estaria profundamente embriagado.
Perdido nestes e em muitos outros ébrios e alucinados pensamentos, Lázaro estendeu as pernas. Os músculos doíam-lhe de tanto ter andado naquele dia. Afinal não era nenhuma divindade acima das corriqueiras coisas da vida, não era mesmo, tinha pernas e músculos e estes, como todos, cediam perante o cansaço. Riu-se sozinho. Primeiro baixinho. Depois mais alto, até que começou a rir à gargalhada, o riso vinha-lhe sem saber porquê, do mais profundo do seu ser, daquele sítio onde os pensamentos conscientes não conseguem penetrar, não senhor, por mais que tentem, não conseguem, as coisas vêm e inundam-nos a cabeça, sentimos nós que sabemos muito quando afinal muito poucos de nós sabemos o que sentimos. Aquele homem ria perdidamente. Sem saber porquê. Ria e ria e ria. E mais um bocado, até que, também ela, a barriga, era como os músculos das pernas, não era divina, cansava-se e, ao começar a doer-lhe, só lhe deu mais vontade de rir, era um homem, um homem sem norte mas era um homem e sentia-se mais vivo do que alguma vez se havia sentido na sua vida inteira. Aos poucos e poucos o riso gastava-se. Soluçou ainda mais umas meias gargalhadas e, no final, já quase só gemia, um gemido de riso, um gemido de gozo, até que se calou, ofegante, cansado, surpreendido pela sua loucura mas feliz por a ter, sentia-se livre, tão livre que se podia rir à vontade sem sequer ter de saber porquê. Suspirou ele, daqueles suspiros de elevada e penetrante profundidade e levantou-se, virou-se de volta para a porta que dava acesso ao hall do hotel e, principiando a caminhar nessa direcção, não viu, ou seja não soube nem sentiu aquele pequena e rasteirante perna de madeira e, por isso mesmo, cedendo à pressão de tão insidioso membro, tropeçou na cadeira onde tinha estado sentado e, cambaleando, acabou por se ir estatelar no chão. De imediato, não fosse algum indesejável observador reparar em tão vergonhosa situação, fez grande força nos braços e nas pernas, levantou-se num ápice e, uma vez de pé, parou, escutou e olhou, não vinha ali nenhum comboio, também ninguém o estava a observar, estava sozinho e, por isso mesmo, à vontade na sua privada solidão, sorriu novamente. Se calhar estaria mais embriagado do que tinha suposto, isso já a gente poderia ter-lhe dito, mas enfim, é melhor quando cada um aprende por si próprio, é essa mesma a receita do conhecimento. Lázaro ali de pé, percebeu, naquele momento, o que o tanto tinha feito rir: a ilusão da divindade. No seu louco devaneio imaginara-se espírito e alma penada, imaginara-se fora de si próprio, acima de si e dos outros, fora da realidade. Imaginara-se realizador de um filme que salpicava os seus olhos com uma realidade que sabia a super oito, a película plástica e imastigável a algo mais do aquele sensaborão, insípido e triste gosto que, via ele agora, talvez fosse mais correcto dizer: saboreava ele agora, mas enfim, percebia ele agora que nunca tinha saboreado a vida como ela realmente era, só como ele desejaria que ela fosse. E ao provar o verdadeiro gosto da vida, não sabia ele o que isso era e, por essa razão, essa razão apenas, não por nenhuma arrogância particular, pelo contrário, por ignorância e reconhecimento dessa mesma falta de conhecimentos, andara ele ao engano, a arrogar-se de superar a realidade, de ser mais do que era, de estar acima de tudo. Ao perceber que afinal, mesmo naquele transe peculiar e inaudito que o submergia numa paz indefinida, que o alagava dentro de si mesmo, mesmo nesse ensopado sensorial, ele continuava a embriagar-se, o álcool afectava-o, isso significava que continuava a ser um homem perene e sensível aos estímulos, um homem como outro qualquer, então, coisa formidável, a sua desconexão não era real, era uma ilusão, uma simples, se bem que estranha, ilusão. A realidade continuava ali. Ele é que se iludia ao acreditar que estava para além dela. Fantástico! Alívio respirado e sentido. Mais um suspiro. E riu-se outra vez, alijado, liberto e, finalmente, descarregado. Apesar de sentir a paz da incoerência ela, afinal, era só aparente. E o medo que lhe assolava os ossos podia agora partir em paz. Ele estava, de novo, no controle de si próprio ou, pelo menos assim, dessa forma infantil e singela, como um petiz que dá os primeiros passos em busca de uma bola azul e encarnada, titubeante, com as pernas a tremer de tanta excitação sensorial, deu um passo atrás para ganhar balanço e recomeçou o caminho. 
(Cont.)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VII)

O homem deu mais um gole no seu gin. Saboreou-o. Mais uma vez. E outra. Pousou o copo, tendo o cuidado de afastar com a outra mão o livro que tinha em cima da mesa, não queria que ele se molhasse com os círculos de água que, como é normal e habitual, escorrem de um copo fresco poisado em tampo aquecido. Olhou o copo e, percebendo que tanta prova fazia a existência tónica rapidamente se aproximar do seu final, chamou o empregado e pediu mais um. Deu mais um gole, outro, e o gin acabou. Já era o terceiro naquela tarde. Sorveu, de forma barulhenta, como uma criança que termina o seu sumo de pacote na ânsia que o contínuo aspirar transforme o cartão do pacote, ou o gelo do copo neste caso, em mais sumo, nunca acontece, estranhas e repetidas, irreais e ilusórias esperanças que fazem os quotidianos das coisas pequenas. E o homem, tal como esses desiludidos petizes, abandonou o copo. Não seria raro numa criança acabar o sumo com pompa e circunstância, claro, com o estrondo que o pacote pisado com força e secura causa, desde que previamente enchido de ar pela palhinha, esse seria o foguete da pompa, já o fogo de artifício da circunstância seriam as gotas imensas que expelidas de dentro do pacote salpicavam tudo o que estava ao redor. Os miúdos riam-se do seu fogo de artifício e foguete, logo veio a ideia de beber mais sumos para fazer mais explosões, em quase simultâneo como nos tais fogos festivaleiros, para a próxima talvez se juntassem uns três ou quatro e o fizessem todos ao mesmo tempo. O homem recordava precisamente esses momentos da sua infância num torpor melancólico que parecia só se adensar à medida que os álcoois tónicos tomavam o seu lugar na festa cerebral. Esta aumentava de tom, o torpor também; anestesiado, o homem pensou que gostaria de fazer explodir um pacote de sumo, como não tinha nenhum teve de se contentar com um arroto, foi esse o seu festival, mas baixinho e com a mão à frente, não fosse alguém ouvir. Podem muito os torpores alcoólicos, mas por enquanto não tanto que fizessem aquele homem perder a compostura. Chegou o gin tónico. Logo dois goles para manter a dinâmica. E, naquele momento, logo após o segundo gole, e este tinha sido mais pequeno do que o primeiro, um gole de confirmação daquilo que tinha faltado ao primeiro, como se houvesse uma receita mágica da quantidade que teria de ser ingerida naquele momento, um ponto ideal, um encontro entre o tempo, a realidade e o torpor alcoólico, uma fórmula exacta, e se calhar até havia e, naquele instante, estava encontrada. O homem fez um esgar de satisfação, recostou-se na cadeira de verga e fechou os olhos. Suspirou. Colocou as mãos atrás da cabeça e deixou a mente libertar-se do quer que seja que a prendia e, sem esforço, com a energia do vapor alcoólico, principiou a viajar, a percorrer com os olhos, de todos os mais inventivos, poderosos e observadores, falamos, claro está, dos olhos da mente, aqueles que se abrem quando os outros, os da cara, se fecham, e, dessa forma, velada mas ao mesmo tempo atenta e desperta, o homem percorreu novamente as ruas de Maputo, Lourenço Marques antiga, a marginal, as vistas da praia, e as largas e desgastadas avenidas dos ídolos marxistas e comunistas, tal como dos heróis da revolução, eles também a tiveram, e durou muitos anos, foi muito mais violenta, ainda dura e, desse sangue derramado, dessa torrente de miséria e violência ainda se ouvem os gritos naquelas ruas perdidas, naqueles recantos africanos ainda ecoam as súplicas de quem sofreu aquilo que é insofrível, de quem passou o inimaginável. E esse inimaginável é humano. E está ali. E sente-se. E aquele homem sentia-o. E talvez sentindo o que nunca poderia imaginar sentir, conseguisse vir a descobrir aquilo que nunca havia descoberto: a raiz das suas próprias angústias.
(Cont.)

terça-feira, 12 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VI)

Depois de várias investidas dos vendedores, estes acabaram por desistir, deixando em paz o homem que, corado do calor, com ar sonhador e meio ausente, se entretinha com o seu gin tónico, remédio de males futuros, mais vale prevenir que remediar, o gin tónico é detentor de uma boa dose de água tónica, entenda-se água pulverizada com sulfato de quinina, esse alcalóide de gosto amargo com funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas, o harmonioso conjunto de vinte moléculas de carbono, vinte e quatro de hidrogénio, duas de nitrogénio e outras duas de oxigénio. Com tantas moléculas de génios, não será de mau gosto notar a genialidade da obra divina, isto realmente dá para tudo, até para espalhar estereoisómeros de quinidina por esses trópicos fora, é também por aí que anda a malária, pérfida e vil doença que voa à boleia do mosquito, é curioso que onde haja a doença logo se descobre por intrincados e complexos métodos algo que a cura, é o jogo da vida, o do gato e do rato, ou o do medo e da esperança, assim vamos nós, com medo do que nos mata e a rezar pelo que nos salva, talvez um dia possamos perder o medo, afinal, como acabámos de ver, não há mal sem remédio, não há doença sem cura, não há portanto medo sem esperança. E quando, como é este o caso, falamos, claro, do gin tónico, o remédio sabe bem porque é fresco para matar a sede mas é também seco para matar a humidade, assim o melhor é prevenir mesmo, então na esplanada enquanto se descansa ao final da tarde a sonhar com o que se teve ou que se quer vir a ter, melhor ainda, juntam-se as eternas comadres tão difíceis de se encontrarem, falamos claro do útil e do agradável, juntam-se os dois à esquina a tocar a concertina e gera-se um momento puro, daqueles que se alongam por vários momentos, daqueles que nos levam um sorriso à boca, o calor, o frenesim africano ora acima ora abaixo naquela rua, as flores das acácias, tudo misturado, tudo diluído num único momento, numa única sensação. Ora, os momentos já toda a gente sabe que são como a economia, impera a lei da oferta e da procura, aquilo que muito é procurado e pouco é oferecido é muito raro, logo de valor elevado e, assim, estes raros momentos em que o útil e o agradável dão as mãos e descansam lado a lado são momentos muito valiosos que ninguém se pode dar ao luxo de desperdiçar. Pelo contrário. Bebem-se, saboreiam-se e engolem-se, faz-se como a comida, que não haja nenhum equívoco, aquilo que se engole passa a fazer parte de nós, a digestão trata de enviar os nutrientes para o sangue, já a digestão dos momentos, essa igualmente fundamental tarefa, trata de enviar os momentos para a memória ou para o esquecimento, peneira-os no acto da decisão, e que ninguém se esqueça que da mesma forma como não se vive sem nutrientes sanguíneos, também ninguém sobrevive sem uma sã memória, pejada de boas recordações, cheia de grandes momentos, momentos como este que aquele homem vive agora. Nesta cidade, por enquanto, sem nome, aquele homem, por enquanto sem nome, perdia-se numa estranha dialéctica: por alguma razão aquela energia que imana do livre resfolegar das pessoas, como naquelas que se acotovelam em passeios europeus, ali era diferente. Ele procurava-a mas não a encontrava. Eram outras pessoas. Outros anseios. Outros passeios. E, por esta razão, simples e estranha, aquele homem sentia-se perdido. Estava noutro mundo, um mundo que não conhecia, um mundo que não dominava e ao qual não se conseguia ligar. Estava de fora. Excluído. Um atento observador que caminhava naquela peculiar realidade como uma leve e espraiada alma penada, um fantasma do futuro ou do passado, um espírito incorpóreo, um elemento arredio e esquivo a tudo o que o rodeava. E estranho era o efeito de tal situação: quando tudo o que nos rodeia parece exterior, quando não nos inserimos onde estamos inseridos, antítese pleonástica, quando tal misteriosa e enigmática situação nos atinge, a pergunta que nos aflora o nosso perturbado cérebro acaba sempre por ser a eterna e insatisfeita questão da identidade, quem somos nós, quem sou eu, o que sou eu que ando aqui diferente, à parte, de fora, alheio e estrangeiro a tudo e todos. Aquele homem estava desconectado. E tentava enlevar-se no conforto ilusório daquele gin tonificado. Tirava satisfação daquele momento. O que só lhe turvava a medida do seu sonho, o desincorporava ainda mais daquele filme africano e o elevava a um desconhecido olimpo de ébano, um olimpo mental, meditativo e de contemplação, sobre o misterioso filme que se desenrolava à frente dos seus olhos, da sua mente, e, também, sobre ele próprio, porque se estava desligado da realidade envolvente então, evidentemente, sobrava a sua realidade imanente, a sua identidade, o seu eu; e ele contemplava-o, com felicidade, afinal fora exactamente a procura da sua identidade que levara aquele homem àquelas terras, à fuga, à aventura, à descoberta do mundo, o seu e o dos outros, à descoberta da alma, à descoberta de si próprio.
(cont.)

sexta-feira, 4 de março de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (V)

Desde que me lembro de existir que o Metro, aquele comboio que aparece vomitado por um misterioso túnel negro e sem fim, exerce um fascínio, um estranho e inexplicável fascínio, na minha mente. Talvez, no início, petiz iletrado ainda, vislumbrasse nele algo muito parecido com o comboio normal da linha de Cascais mas completamente diferente. Uma realidade alternativa, talvez, difícil de explicar mas a mesma sensação que tive ao entrar no apartamento da vizinha de baixo: era igual ao nosso mas com outros móveis, outros quadros, outros cheiros. Sendo igual, não deixava de ser diferente, como se o mundo criasse uma versão alternativa dele próprio logo ali a uns escassos metros de escadas. Talvez uns minutos depois aparecesse um outro petiz iletrado, igual a mim mas vestido com roupas diferentes, talvez, ali naquele mundo quase igual ao meu, estivesse um outro petiz quase igual a mim, um outro eu que não fosse eu. Era como se fosse um outro nível de um jogo de computador: as mesmas linhas, o mesmo cenário mas ora mudava a cor, ora mudava o animal contra o qual se lutava. Talvez seja isso: era a descoberta de um padrão, o mundo multiplicava-se em realidades que, sendo cada uma sucessivamente quase igual à anterior não deixava de apresentar  a sua própria diferença. O mundo é, de facto, bem mais complexo e diferente do que aquele petiz poderia no seu maior desvario sonhar; mas o facto de essa sensação da 'quase igualdade e alguma diferença' continuar a alimentar o meu fascínio só me demonstra que aquele pequeno petiz ainda vive em mim e que o mundo continua  ser muito mais diferente do que no meu maior desvario eu possa ainda imaginar. No fundo, vendo bem, o padrão desta estranha sensação sou eu próprio: sempre mas sempre quase igual a alguém que fui mas sempre um pouco diferente a cada momento que passa.
(Cont.)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (IV)


“A chuva caía lá fora, forte e pesada, batia no empedrado passeio salpicando, saltando e rolando por entre os intervalos das pedras rumo à estrada alcatroada. A harmónica sinfonia aquática não parava, monótona, cinzenta, contínua e imparável, deixando a janela decorada por pequenas gotas, umas maiores, outras mais pequenas, gotas que se aguentavam um pouco até que, ao som de trovões e com a luz psicadélica dos relâmpagos por detrás, soltavam-se pelo silício, escorriam, escorriam, alargavam-se indo de encontro a um parapeito branco de mármore. Aí chegadas, livres como sempre, certamente, o haveria desejado ser, soltas como penas ao vento, deixavam-se cair até ao tal empedrado passeio, calçada lisboeta, rumo dessas gotas, as tais momentaneamente aprisionadas numa janela, tal como o de todas as suas irmãs, afinal vinham todas do mesmo sítio, seria apenas normal que o seu fado fosse o mesmo também.
O pequeno petiz, fechado em casa, refugiado no quarto, amplo de espaço e singela representação física de um diminuto mundo infantil ainda por se expandir, talvez por precisamente esta razão, estava com medo. A chuva. O trovão. O raio. Tudo acossava a sua, até aí tranquila, vivência, é assim a vida, faz-se de momentos de alegria, de tristeza e também, não esquecer, momentos de convicta força e, claro, evidente está, momentos de incerto medo.
O barulho da trovoada chamou, no entanto, também a atenção da sua mãe que, sábia dos medos e dos anseios do seu filho, entrou com calma e um sorriso pelo quarto dentro. Leu ela, porque sabia essa linguagem de caras de miúdos, que o filho estava necessitado de algo que levasse o seu infante espírito para paisagens mais agradáveis, de menos raios e coriscos, locais de menor agitação atmosférica. Calmamente, com a serenidade que só as mães têm, o miúdo viu aparecer, como que por artes mágicas, o disco de vinil que mais apreciava e que mais vezes ouvia. A tranquilidade inundou-lhe logo a face, consequência da passagem do seu espírito para paragens mais serenas. A antecipação da memória certa, a certeza do imediato oferecem à criança o fim da insegurança do desconhecido. Nem um minuto depois, o Miguel, aconchegado na sua manta preferida, acompanhado com o Cão Azul, seu fiel companheiro, mesmo que pano e espuma fosse a sua constituição não seria errado apelida-lo de mais fiel amigo, deitados, os dois, o Miguel e o Cão Azul, lado a lado, os dois a olhar para a capa do disco de vinil que o Miguel segurava nas mãos, deliciavam-se no regaço da felicidade, a ouvir os eternos versos da Ana Faria: Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, que valente e diligente que nos saiu o Miguel; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, e a seu lato corre, pula e salta o cão (Azul pensava o Miguel) Fiel, Traz uma espada de pau e um chapéu de papel; O cavalo de pau só balança, e é por isso que nunca se cansa, Para o Miguel também nunca há horas, A cavalo vai contando estórias: Zás Trás Pás, com a espada já venci sete malvados, Com a espada, Miguel, arrancaste os cortinados, Catrapum com um soco já venci mais um ladrão; Com um soco, Miguel, atiraste a jarra ao chão; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, que valente e diligente que nos saiu o Miguel; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, e a seu lato corre, pula e salta o cão (Azul pensava o Miguel) Fiel, Traz uma espada de pau e um chapéu de papel; O cavalo de pau só balança, e é por isso que nunca se cansa, Para o Miguel também nunca há horas, A cavalo vai contando estórias; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, semp
re a cavalgar, a galopar no seu corcel, que valente e diligente que nos saiu o Miguel…”
(Cont)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (III)


Ele abriu os olhos lenta e pastosamente, era o costume, habitualmente fechado numa envolvente de forçada solidão, abandonar a aconchegante e confidente terra dos sonhos para entrar no frio mundo dos homens era coisa que normalmente não apetecia. O que aqueles olhos não estavam à espera foi do que aconteceu a seguir: passado o primeiro instante em que não se sabe em que terra se está, se na de lá, se na de cá, se na do meio, se em algum lado, se em lado nenhum, enfim, passado esse indeciso primeiro instante, os olhos, em vez de se voltarem a fechar como de costume para, numa última tentativa desesperada e inútil, todos o sabemos, tentar regressar àquele sonho, desta feita, contrariamente a todas as previsões, ao invés de tentar fechar os olhos para sonhar, abriu-os num ápice para viver. E de que enorme felicidade falamos aqui quando a realidade que nos inunda de manhã é algo que empurra os sonhos para longe, obrigado mas agora não preciso, desapareçam, vá lá, fica para depois, aquilo que tenho à frente dos meus olhos é muito melhor. Ele sorriu. Sorriu mesmo, enchendo o peito daquela vibração mágica que ainda pairava sobre aquela cama de madeira, cama antiga, normalmente vazia mas agora partilhada.
Ela ainda viajava pelo mundo de lá. Deitados abraçados, ela a dormir, ele a acordar, ela vivia o sonho e ele sonhava a vida. Ele olhou para ela demoradamente num momento sem fim. De tão intenso foi aquele olhar que furou a barreira do tempo, aproveitado momento, talvez ainda lá estejam hoje os dois, ela a dormir e ele a olhar. A olhar para ela. Beijou-a levemente, leve, tão leve como se nem sequer lhe tocasse. Como se o seu toque fosse um pequeno risco, ponto negro ou miserável defeito em tamanha perfeição. Ele olhou para ela e viu como ela era bela. Linda. Perfeita. Ele olhou para ela e sentiu, sorriu e chorou com a alma enquanto o cérebro, intoxicado com o imenso sentimento, não conseguindo processar o que o espírito lia no paraíso do amor, o cérebro, parava, soçobrava. Ele sentiu-a, e por isso sentiu o mundo inteiro dentro do seu palpitante peito, acelerado batimento cardíaco aquele que se viu ali, ele olhou para ela, e sentiu-a,foi mesmo isso que aconteceu, ele olhou para ela e sentiu-a. E era tanto o que ele sentia que a pobre e triste e, naquele momento inútil, razão, instrumento cerebral que guiava a sua vida, reduzida à sua merecida pequenez, não funcionava, ele olhou para ela e sentiu-a mas porque o cérebro parava com tanto sentir e a razão soçobrava com tanto sentimento, ele olhou para ela, sentiu-a mas não soube o que pensar. O pensamento era arma desarmada, o pensamento reduzia-se à simplicidade de uma criança: que sorte que tenho, pensou ele. Ele olhou para ela e repetiu, que sorte que tenho, que sorte que tenho. O momento alastrava-se num grito de felicidade sem fim. E concentrou-se em sentir. O seu cheiro. Os seus cabelos negros. A pele macia. Reviveu aquele sorriso. Aquele olhar alegre com um toque desconfiado. Ele olhou para ela e já nem pensou em nada. Ouviu-lhe a respiração.
O momento continuava. Ali. Abraçados. Ali. Enleados.
Ele olhava para ela e respirava com ela.

(Cont)

terça-feira, 21 de julho de 2009

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (II)


Quarto de dormir. 11h32

Que fazes tu aí?
Nada.
Como nada?
Nada.
Mas estás aí a mexer nisso para quê?
Para nada.
Ouve.. Não queres dizer não digas, agora não me digas que não é nada. Dizes só que não queres dizer.
Está bem.
Está bem, o quê?
Está bem.
Porra, está bem o quê? Não me queres dizer o que é que estás a fazer?
Sim.
Mas porquê?
Por nada.
Mas o que é que se passa?
Nada.
Mas fiz-te alguma coisa?
Não.
Então estás chateada com quê?
Com nada.
Então mas estás a falar assim comigo porquê?
Não estou a falar de forma nenhuma.
Essa agora! Mas que raio te fiz eu pah??
Não me levantes a voz.
MAS LEVANTAR A VOZ O QUÊ? SÓ QUERIA SABER O QUE É QUE ESTAVAS A FAZER!
Cala-te, já não te posso ouvir.
Eu é que não te posso ouvir!
Estás louco? Eu estava aqui calada!
Louca estás tu, que raio te fiz eu, porra só queria saber o que é que estavas a fazer.
E porque é que tens de saber tudo? Deixa-me em paz.
Deixa-me tu em paz.
Eu estava calada.
Vai à merda.
Vai tu.

(Cont.)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (I)


A pouco e pouco os carros abrandam e imobilizam-se, em fila, ou melhor duas filas, daquelas lado a lado, como meninos da escola primária de mãos dadas à espera de entrar na sala de aula. O sinal está encarnado. Uns, mais afoitos, não acendem sequer as luzes dos travões, permanecem em ponto de embraiagem, andam ligeiramente para a frente e para trás, uma vez, duas vezes, estão prontos, três vezes, querem ir, querem avançar, sair da prisão momentânea em que se encontraram, vamos lá embora, a vida está-se a acabar. Já os calmos, pastelões peritos em pisar ovos, dirão os primeiros, já esses não só carregam nos travões como demoram a soltar os pés de tal pedal. Agrada-lhes a segurança do certo, do parado, do contemplativo momento em que nada se passa. Perdidos nos seus pensamentos, irritam os acelaradores em potência que se apostam já na rápida largada rumo ao metro seguinte de estrada. Uma buzina ouve-se ao fundo. Mais insistente. Rotativos. Este carro não pára, não pode parar. E de repente todos, os calmos e os afoitos, os chatos e os apressados, os parvos e os peritos do volante, todos, sem excepção, todos eles se apressam, se apoquentam bem, digo-vos que estava lá e vi, todos dão um jeitinho, sobem o passeio, vão um pouco à frente e para o lado, rápido, urgência repentina, vamos todos juntos fazer um esforço. E dá resultado: em poucos segundos uma terceira faixa, torta, curvilínea, uma serpente de alcatrão toma forma e o carro que apita e grita e luz passa, passa a correr e todos os outros, encolhidos, franzem os pára-choques, sentem um ligeiro arrepio, que se safe, que se salve, aquele vai mal, coitadinho, Deus lhe valha, Deus o acuda, força nas canetas, aguenta-te pá; é de um momento bonito que falamos aqui, que ninguém duvide, é tão raro ver estes perdidos humanos todos juntos a desejar o mesmo e a lutar pelo mesmo. Cada um na sua vida, agora todos na nossa vida, é assim a vida, como diria o poeta, Cesse tudo o que a antiga musa canta que valor mais alto se levanta. O sinal fica verde. Os calmos, mais apressados, arrancam com rapidez. Os apressados, mais calmos, vão com menos ginete, afinal, em última análise, coitadinhos, coitadinhos, mas espero bem é que não venha a ser eu.
(Cont.)