quinta-feira, 25 de junho de 2009
O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (I)
A pouco e pouco os carros abrandam e imobilizam-se, em fila, ou melhor duas filas, daquelas lado a lado, como meninos da escola primária de mãos dadas à espera de entrar na sala de aula. O sinal está encarnado. Uns, mais afoitos, não acendem sequer as luzes dos travões, permanecem em ponto de embraiagem, andam ligeiramente para a frente e para trás, uma vez, duas vezes, estão prontos, três vezes, querem ir, querem avançar, sair da prisão momentânea em que se encontraram, vamos lá embora, a vida está-se a acabar. Já os calmos, pastelões peritos em pisar ovos, dirão os primeiros, já esses não só carregam nos travões como demoram a soltar os pés de tal pedal. Agrada-lhes a segurança do certo, do parado, do contemplativo momento em que nada se passa. Perdidos nos seus pensamentos, irritam os acelaradores em potência que se apostam já na rápida largada rumo ao metro seguinte de estrada. Uma buzina ouve-se ao fundo. Mais insistente. Rotativos. Este carro não pára, não pode parar. E de repente todos, os calmos e os afoitos, os chatos e os apressados, os parvos e os peritos do volante, todos, sem excepção, todos eles se apressam, se apoquentam bem, digo-vos que estava lá e vi, todos dão um jeitinho, sobem o passeio, vão um pouco à frente e para o lado, rápido, urgência repentina, vamos todos juntos fazer um esforço. E dá resultado: em poucos segundos uma terceira faixa, torta, curvilínea, uma serpente de alcatrão toma forma e o carro que apita e grita e luz passa, passa a correr e todos os outros, encolhidos, franzem os pára-choques, sentem um ligeiro arrepio, que se safe, que se salve, aquele vai mal, coitadinho, Deus lhe valha, Deus o acuda, força nas canetas, aguenta-te pá; é de um momento bonito que falamos aqui, que ninguém duvide, é tão raro ver estes perdidos humanos todos juntos a desejar o mesmo e a lutar pelo mesmo. Cada um na sua vida, agora todos na nossa vida, é assim a vida, como diria o poeta, Cesse tudo o que a antiga musa canta que valor mais alto se levanta. O sinal fica verde. Os calmos, mais apressados, arrancam com rapidez. Os apressados, mais calmos, vão com menos ginete, afinal, em última análise, coitadinhos, coitadinhos, mas espero bem é que não venha a ser eu.
(Cont.)
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