quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (IV)


“A chuva caía lá fora, forte e pesada, batia no empedrado passeio salpicando, saltando e rolando por entre os intervalos das pedras rumo à estrada alcatroada. A harmónica sinfonia aquática não parava, monótona, cinzenta, contínua e imparável, deixando a janela decorada por pequenas gotas, umas maiores, outras mais pequenas, gotas que se aguentavam um pouco até que, ao som de trovões e com a luz psicadélica dos relâmpagos por detrás, soltavam-se pelo silício, escorriam, escorriam, alargavam-se indo de encontro a um parapeito branco de mármore. Aí chegadas, livres como sempre, certamente, o haveria desejado ser, soltas como penas ao vento, deixavam-se cair até ao tal empedrado passeio, calçada lisboeta, rumo dessas gotas, as tais momentaneamente aprisionadas numa janela, tal como o de todas as suas irmãs, afinal vinham todas do mesmo sítio, seria apenas normal que o seu fado fosse o mesmo também.
O pequeno petiz, fechado em casa, refugiado no quarto, amplo de espaço e singela representação física de um diminuto mundo infantil ainda por se expandir, talvez por precisamente esta razão, estava com medo. A chuva. O trovão. O raio. Tudo acossava a sua, até aí tranquila, vivência, é assim a vida, faz-se de momentos de alegria, de tristeza e também, não esquecer, momentos de convicta força e, claro, evidente está, momentos de incerto medo.
O barulho da trovoada chamou, no entanto, também a atenção da sua mãe que, sábia dos medos e dos anseios do seu filho, entrou com calma e um sorriso pelo quarto dentro. Leu ela, porque sabia essa linguagem de caras de miúdos, que o filho estava necessitado de algo que levasse o seu infante espírito para paisagens mais agradáveis, de menos raios e coriscos, locais de menor agitação atmosférica. Calmamente, com a serenidade que só as mães têm, o miúdo viu aparecer, como que por artes mágicas, o disco de vinil que mais apreciava e que mais vezes ouvia. A tranquilidade inundou-lhe logo a face, consequência da passagem do seu espírito para paragens mais serenas. A antecipação da memória certa, a certeza do imediato oferecem à criança o fim da insegurança do desconhecido. Nem um minuto depois, o Miguel, aconchegado na sua manta preferida, acompanhado com o Cão Azul, seu fiel companheiro, mesmo que pano e espuma fosse a sua constituição não seria errado apelida-lo de mais fiel amigo, deitados, os dois, o Miguel e o Cão Azul, lado a lado, os dois a olhar para a capa do disco de vinil que o Miguel segurava nas mãos, deliciavam-se no regaço da felicidade, a ouvir os eternos versos da Ana Faria: Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, que valente e diligente que nos saiu o Miguel; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, e a seu lato corre, pula e salta o cão (Azul pensava o Miguel) Fiel, Traz uma espada de pau e um chapéu de papel; O cavalo de pau só balança, e é por isso que nunca se cansa, Para o Miguel também nunca há horas, A cavalo vai contando estórias: Zás Trás Pás, com a espada já venci sete malvados, Com a espada, Miguel, arrancaste os cortinados, Catrapum com um soco já venci mais um ladrão; Com um soco, Miguel, atiraste a jarra ao chão; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, que valente e diligente que nos saiu o Miguel; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel, e a seu lato corre, pula e salta o cão (Azul pensava o Miguel) Fiel, Traz uma espada de pau e um chapéu de papel; O cavalo de pau só balança, e é por isso que nunca se cansa, Para o Miguel também nunca há horas, A cavalo vai contando estórias; Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, semp
re a cavalgar, a galopar no seu corcel, que valente e diligente que nos saiu o Miguel…”
(Cont)

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