O homem deu mais um gole no seu gin. Saboreou-o. Mais uma vez. E outra. Pousou o copo, tendo o cuidado de afastar com a outra mão o livro que tinha em cima da mesa, não queria que ele se molhasse com os círculos de água que, como é normal e habitual, escorrem de um copo fresco poisado em tampo aquecido. Olhou o copo e, percebendo que tanta prova fazia a existência tónica rapidamente se aproximar do seu final, chamou o empregado e pediu mais um. Deu mais um gole, outro, e o gin acabou. Já era o terceiro naquela tarde. Sorveu, de forma barulhenta, como uma criança que termina o seu sumo de pacote na ânsia que o contínuo aspirar transforme o cartão do pacote, ou o gelo do copo neste caso, em mais sumo, nunca acontece, estranhas e repetidas, irreais e ilusórias esperanças que fazem os quotidianos das coisas pequenas. E o homem, tal como esses desiludidos petizes, abandonou o copo. Não seria raro numa criança acabar o sumo com pompa e circunstância, claro, com o estrondo que o pacote pisado com força e secura causa, desde que previamente enchido de ar pela palhinha, esse seria o foguete da pompa, já o fogo de artifício da circunstância seriam as gotas imensas que expelidas de dentro do pacote salpicavam tudo o que estava ao redor. Os miúdos riam-se do seu fogo de artifício e foguete, logo veio a ideia de beber mais sumos para fazer mais explosões, em quase simultâneo como nos tais fogos festivaleiros, para a próxima talvez se juntassem uns três ou quatro e o fizessem todos ao mesmo tempo. O homem recordava precisamente esses momentos da sua infância num torpor melancólico que parecia só se adensar à medida que os álcoois tónicos tomavam o seu lugar na festa cerebral. Esta aumentava de tom, o torpor também; anestesiado, o homem pensou que gostaria de fazer explodir um pacote de sumo, como não tinha nenhum teve de se contentar com um arroto, foi esse o seu festival, mas baixinho e com a mão à frente, não fosse alguém ouvir. Podem muito os torpores alcoólicos, mas por enquanto não tanto que fizessem aquele homem perder a compostura. Chegou o gin tónico. Logo dois goles para manter a dinâmica. E, naquele momento, logo após o segundo gole, e este tinha sido mais pequeno do que o primeiro, um gole de confirmação daquilo que tinha faltado ao primeiro, como se houvesse uma receita mágica da quantidade que teria de ser ingerida naquele momento, um ponto ideal, um encontro entre o tempo, a realidade e o torpor alcoólico, uma fórmula exacta, e se calhar até havia e, naquele instante, estava encontrada. O homem fez um esgar de satisfação, recostou-se na cadeira de verga e fechou os olhos. Suspirou. Colocou as mãos atrás da cabeça e deixou a mente libertar-se do quer que seja que a prendia e, sem esforço, com a energia do vapor alcoólico, principiou a viajar, a percorrer com os olhos, de todos os mais inventivos, poderosos e observadores, falamos, claro está, dos olhos da mente, aqueles que se abrem quando os outros, os da cara, se fecham, e, dessa forma, velada mas ao mesmo tempo atenta e desperta, o homem percorreu novamente as ruas de Maputo, Lourenço Marques antiga, a marginal, as vistas da praia, e as largas e desgastadas avenidas dos ídolos marxistas e comunistas, tal como dos heróis da revolução, eles também a tiveram, e durou muitos anos, foi muito mais violenta, ainda dura e, desse sangue derramado, dessa torrente de miséria e violência ainda se ouvem os gritos naquelas ruas perdidas, naqueles recantos africanos ainda ecoam as súplicas de quem sofreu aquilo que é insofrível, de quem passou o inimaginável. E esse inimaginável é humano. E está ali. E sente-se. E aquele homem sentia-o. E talvez sentindo o que nunca poderia imaginar sentir, conseguisse vir a descobrir aquilo que nunca havia descoberto: a raiz das suas próprias angústias.
(Cont.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário