sexta-feira, 22 de abril de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (VIII)

Sentado na mesa da esplanada da piscina, gozava mais um gin tónico. Já tinha perdido a conta a quantos tinha bebido nesse dia. Talvez uns seis. Cinco? Mais de quatro seguramente. Ao pensar nestas quantificações, acabou por encolher os ombros. Não lhe interessava saber. Para ele a importância residia agora no momento. Nos escombros de uma vida passada, enquanto não assumia uma nova, enquanto permanecia ali no limbo intemporal, nada tinha consequências, nada importava demasiado, nada o afectava. Pairava sobre a realidade, ou pelo menos assim ele o pensava, estranha coisa esta da auto percepção da existência, dá para nos acharmos coisas diferentes das que somos, dá para nos imaginarmos o que
convenhamos
pode ser uma coisa fantástica, aí nascem sonhos e devaneios, aí nascem mundos novos mas,
não esqueçamos
tudo o que é bom tem o seu risco, o seu medo, se podemos imaginar também nos podemos perder. E se andar perdido durante uns tempos até pode ser engraçado, o complicado é se nos perdermos de mais, que é como quem diz se perdermos o caminho de volta para casa. Há quem dela saia com um cordel, daqueles de rija estrutura, preso à porta de casa e atado ao pé ou segurado pela sua ponta por uma mão, e, dessa maneira, segura e séria, passo atrás de passo, com resoluta confiança pode o cauto caminhante seguir o seu percurso ziguezagueante, pode ele ir à vontade porque quando desse sem destino passeio se fartar, bastar-lhe-á dar meia volta, virar, volver e, com toda a calma, seguir o cordel que o liga ao porto seguro do seu ninho. Mas o Lázaro, esse incauto viajante, esse ia sem cordel algum, ia livre como um passarinho, longe da terra que o viu nascer e da outra que o viu crescer e, assim, sabe-se lá onde irá parar e se desse local alguma vez irá regressar. Iludia-se ele a pensar que por menos gins que bebesse nunca estaria completamente sóbrio tal como por mais que bebesse nunca estaria profundamente embriagado.
Perdido nestes e em muitos outros ébrios e alucinados pensamentos, Lázaro estendeu as pernas. Os músculos doíam-lhe de tanto ter andado naquele dia. Afinal não era nenhuma divindade acima das corriqueiras coisas da vida, não era mesmo, tinha pernas e músculos e estes, como todos, cediam perante o cansaço. Riu-se sozinho. Primeiro baixinho. Depois mais alto, até que começou a rir à gargalhada, o riso vinha-lhe sem saber porquê, do mais profundo do seu ser, daquele sítio onde os pensamentos conscientes não conseguem penetrar, não senhor, por mais que tentem, não conseguem, as coisas vêm e inundam-nos a cabeça, sentimos nós que sabemos muito quando afinal muito poucos de nós sabemos o que sentimos. Aquele homem ria perdidamente. Sem saber porquê. Ria e ria e ria. E mais um bocado, até que, também ela, a barriga, era como os músculos das pernas, não era divina, cansava-se e, ao começar a doer-lhe, só lhe deu mais vontade de rir, era um homem, um homem sem norte mas era um homem e sentia-se mais vivo do que alguma vez se havia sentido na sua vida inteira. Aos poucos e poucos o riso gastava-se. Soluçou ainda mais umas meias gargalhadas e, no final, já quase só gemia, um gemido de riso, um gemido de gozo, até que se calou, ofegante, cansado, surpreendido pela sua loucura mas feliz por a ter, sentia-se livre, tão livre que se podia rir à vontade sem sequer ter de saber porquê. Suspirou ele, daqueles suspiros de elevada e penetrante profundidade e levantou-se, virou-se de volta para a porta que dava acesso ao hall do hotel e, principiando a caminhar nessa direcção, não viu, ou seja não soube nem sentiu aquele pequena e rasteirante perna de madeira e, por isso mesmo, cedendo à pressão de tão insidioso membro, tropeçou na cadeira onde tinha estado sentado e, cambaleando, acabou por se ir estatelar no chão. De imediato, não fosse algum indesejável observador reparar em tão vergonhosa situação, fez grande força nos braços e nas pernas, levantou-se num ápice e, uma vez de pé, parou, escutou e olhou, não vinha ali nenhum comboio, também ninguém o estava a observar, estava sozinho e, por isso mesmo, à vontade na sua privada solidão, sorriu novamente. Se calhar estaria mais embriagado do que tinha suposto, isso já a gente poderia ter-lhe dito, mas enfim, é melhor quando cada um aprende por si próprio, é essa mesma a receita do conhecimento. Lázaro ali de pé, percebeu, naquele momento, o que o tanto tinha feito rir: a ilusão da divindade. No seu louco devaneio imaginara-se espírito e alma penada, imaginara-se fora de si próprio, acima de si e dos outros, fora da realidade. Imaginara-se realizador de um filme que salpicava os seus olhos com uma realidade que sabia a super oito, a película plástica e imastigável a algo mais do aquele sensaborão, insípido e triste gosto que, via ele agora, talvez fosse mais correcto dizer: saboreava ele agora, mas enfim, percebia ele agora que nunca tinha saboreado a vida como ela realmente era, só como ele desejaria que ela fosse. E ao provar o verdadeiro gosto da vida, não sabia ele o que isso era e, por essa razão, essa razão apenas, não por nenhuma arrogância particular, pelo contrário, por ignorância e reconhecimento dessa mesma falta de conhecimentos, andara ele ao engano, a arrogar-se de superar a realidade, de ser mais do que era, de estar acima de tudo. Ao perceber que afinal, mesmo naquele transe peculiar e inaudito que o submergia numa paz indefinida, que o alagava dentro de si mesmo, mesmo nesse ensopado sensorial, ele continuava a embriagar-se, o álcool afectava-o, isso significava que continuava a ser um homem perene e sensível aos estímulos, um homem como outro qualquer, então, coisa formidável, a sua desconexão não era real, era uma ilusão, uma simples, se bem que estranha, ilusão. A realidade continuava ali. Ele é que se iludia ao acreditar que estava para além dela. Fantástico! Alívio respirado e sentido. Mais um suspiro. E riu-se outra vez, alijado, liberto e, finalmente, descarregado. Apesar de sentir a paz da incoerência ela, afinal, era só aparente. E o medo que lhe assolava os ossos podia agora partir em paz. Ele estava, de novo, no controle de si próprio ou, pelo menos assim, dessa forma infantil e singela, como um petiz que dá os primeiros passos em busca de uma bola azul e encarnada, titubeante, com as pernas a tremer de tanta excitação sensorial, deu um passo atrás para ganhar balanço e recomeçou o caminho. 
(Cont.)

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