terça-feira, 12 de abril de 2011

PARA ALÉM DO BEM E DO MAL; A HIPOCRISIA

"No mundo actual é cada vez mais evidente que toda e qualquer visão do mundo é estética, e que a pessoa humana nada tem a opor à arregimentação, ao conformismo, à nivelação, senão a sua própria existência que, criticamente, se forma e se define, ainda que mutavelmente, não nas suas relações de aderência ou de oposição a um determinado conjunto de valores dominantes, socialmente impostos ou reconhecidos como válidos (qual antigamente acontecia), mas na consciência de que nenhum sistema de valores é válido que não na pessoal verificação a que seja submetido e em que seja livremente aceite ou recusado. Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito que qualquer vida humana; e, se acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal ponto eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se. Não é no romântico regresso à Natureza que o homem se reencontrará, como também não na busca de um mundo em que, aqui ou algures, o seu ser se dissolva. Nós somos animais que negam e sublimam a crueldade feroz e irresponsável do que se chama Natureza; e seremos humanos na medida em que o amoralismo dela se faça em nós uma liberdade em que o morder e devorar não seja mais do que carícia. (...) O mal não se perpetua senão no pretender-se que não existe, ou que, excessivo para a nossa delicadeza, há que deixá-lo num discreto limbo. É no silêncio e no calculado esquecimento dos delicados que o mal se apura e afina - tanto assim é, que é tradicional o amor pelas tiranias pelo silêncio, e que as Inquisições sempre só trouxeram à luz do dia as suas vítimas, para assassiná-las exemplarmente."

Jorge de Sena, Os Grão-Capitães, Prefácio (1971)

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