terça-feira, 18 de agosto de 2009

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (III)


Ele abriu os olhos lenta e pastosamente, era o costume, habitualmente fechado numa envolvente de forçada solidão, abandonar a aconchegante e confidente terra dos sonhos para entrar no frio mundo dos homens era coisa que normalmente não apetecia. O que aqueles olhos não estavam à espera foi do que aconteceu a seguir: passado o primeiro instante em que não se sabe em que terra se está, se na de lá, se na de cá, se na do meio, se em algum lado, se em lado nenhum, enfim, passado esse indeciso primeiro instante, os olhos, em vez de se voltarem a fechar como de costume para, numa última tentativa desesperada e inútil, todos o sabemos, tentar regressar àquele sonho, desta feita, contrariamente a todas as previsões, ao invés de tentar fechar os olhos para sonhar, abriu-os num ápice para viver. E de que enorme felicidade falamos aqui quando a realidade que nos inunda de manhã é algo que empurra os sonhos para longe, obrigado mas agora não preciso, desapareçam, vá lá, fica para depois, aquilo que tenho à frente dos meus olhos é muito melhor. Ele sorriu. Sorriu mesmo, enchendo o peito daquela vibração mágica que ainda pairava sobre aquela cama de madeira, cama antiga, normalmente vazia mas agora partilhada.
Ela ainda viajava pelo mundo de lá. Deitados abraçados, ela a dormir, ele a acordar, ela vivia o sonho e ele sonhava a vida. Ele olhou para ela demoradamente num momento sem fim. De tão intenso foi aquele olhar que furou a barreira do tempo, aproveitado momento, talvez ainda lá estejam hoje os dois, ela a dormir e ele a olhar. A olhar para ela. Beijou-a levemente, leve, tão leve como se nem sequer lhe tocasse. Como se o seu toque fosse um pequeno risco, ponto negro ou miserável defeito em tamanha perfeição. Ele olhou para ela e viu como ela era bela. Linda. Perfeita. Ele olhou para ela e sentiu, sorriu e chorou com a alma enquanto o cérebro, intoxicado com o imenso sentimento, não conseguindo processar o que o espírito lia no paraíso do amor, o cérebro, parava, soçobrava. Ele sentiu-a, e por isso sentiu o mundo inteiro dentro do seu palpitante peito, acelerado batimento cardíaco aquele que se viu ali, ele olhou para ela, e sentiu-a,foi mesmo isso que aconteceu, ele olhou para ela e sentiu-a. E era tanto o que ele sentia que a pobre e triste e, naquele momento inútil, razão, instrumento cerebral que guiava a sua vida, reduzida à sua merecida pequenez, não funcionava, ele olhou para ela e sentiu-a mas porque o cérebro parava com tanto sentir e a razão soçobrava com tanto sentimento, ele olhou para ela, sentiu-a mas não soube o que pensar. O pensamento era arma desarmada, o pensamento reduzia-se à simplicidade de uma criança: que sorte que tenho, pensou ele. Ele olhou para ela e repetiu, que sorte que tenho, que sorte que tenho. O momento alastrava-se num grito de felicidade sem fim. E concentrou-se em sentir. O seu cheiro. Os seus cabelos negros. A pele macia. Reviveu aquele sorriso. Aquele olhar alegre com um toque desconfiado. Ele olhou para ela e já nem pensou em nada. Ouviu-lhe a respiração.
O momento continuava. Ali. Abraçados. Ali. Enleados.
Ele olhava para ela e respirava com ela.

(Cont)

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