terça-feira, 18 de agosto de 2009

JOAQUIM PAÇO D'ARCOS, "MEMÓRIAS DE UMA NOTA DE BANCO"


"Desta forma, quando em pagamento dum prémio abandonei o barracão poeirento de Gaia - onde o cheiro forte a madeira e a álcool perfumado me trazia, em minha excessiva receptibilidade, em estado de lânguido inebriamento - e me instalei na clara e metálica tesouraria duma Companhia de Seguros, entrei nesse escritório com a reverência do crente no templo da sua fé. Pude ali estudar todo o mecanismo de que os homens se rodeiam para enfrentar os golpes duros do destino. O fogo, os desastres de automóvel, o roubo, o abalroamento, o naufrágio, a queda de avião, a invalidez, a morte formavam a gama extensa de calamidades contra a qual a empresa minha possuidora estendia a rede eficaz de seguros e resseguros. A organização devia ser perfeita, os indivíduos que ali iam adquirir as apólices aparentavam, uma vez de posse daqueles papeis milagrosos, absoluta confiança na sua invulnerabilidade. Mas eu só ouvia falar de navios afundados, de aviões tombados, de automóveis destroçados, de vidas perdidas, de mortes pródigas, e tudo decorria em termos de contabilidade, uma vez por outra em moldes de jurisprudência, sem um arrepio, sem uma lástima, sem um grão ténue de piedade. Foi ali, na tesouraria da Companhia de Seguros (...) que comecei a compreender as ilusões de que os homens se alimentam, a maquinaria complicada que constroem para dar uma aparência falsa de segurança à coisa mais incerta que possuem: a vida, a própria vida".

Nenhum comentário:

Postar um comentário