"Por acaso subiu já o leitor ao cume de um monte suficientemente alto para que toda a paisagem lhe aparecesse, à vista, fundida a ponto de não distinguir uma árvore de um casal, nem um rio de um vale sem curso de água? Pois sucede assim nas campinas da história do pensamento humano, quando as olhamos das cumiadas luminosas da crítica. Vêem-se as cousas na sua essência, não importam os acidentes. O fetiche que o selvagem adora, a imagem perante a qual se prostra o comum dos crentes, o arquitecto universal dos pensadores livres, e finalmente esse quid inominado a que a filosofia moderna chamou Inconsciente - tudo isso é igualmente Deus: sòmente é Deus percebido pela imaginação infantil, Deus percebido pela inteligência vulgar, Deus percebido pelo saber incipiente, e Deus finalmente incompreendido, mas sentido, pela sabedoria. E todas essas modalidades de uma mesma impressão, recebida e representada de forma diversa, consoante a natureza e o estado de educação dos homens, são igualmente verdadeiras, igualmente santas e igualmente humorísticas, para aquele que tem coração para sentir as cousas por dentro, e olhos para as ver de fora... Eis aí a suprema liberdade do espírito, o Nirvana apenas intelectual, a que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que permite compreender todas as cousas, analisando-as e classificando-as, sem todavia nos transmitir essa espécie de frialdade de coração, própria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um animal. O filósofo, impassível ao analisar e classificar os fenómenos do espírito humano, há-de misturar ao sorriso que provocam todas as vaidades e ilusões, o amor que merecem todos os sentimentos ingénuos e fundamentalmente bons."
Oliveira Martins, Antero (1886)
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