quinta-feira, 31 de março de 2011

DO PESSIMISMO

"Os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de os manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que o seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreve (o que, entre os que não têm poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para os levar a destruírem-se uns aos outros), por arrancar dos seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e de outros também, através do exemplo.

De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.

A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas , mulheres, filhos, e rebanhos dos outros homens; os segundos, para se defenderem; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja directamente dirigido às suas pessoas, quer indirectamente aos seus parentes, aos seus amigos, à sua nação, à sua profissão ou ao seu nome."

Thomas Hobbes, Leviatã.

ZEITGEIST

Tirado de um comentário de um jornal desportivo, aqui fica uma ideia de como o pensar, o estruturar e o argumentar são tratados no mundo de hoje:
"o kardec tem futuro mas uma coisa e verdade nao soube aproveitar as oportunidades que tive! possas o cardozo bue tempo lesionado e ele nunca aproveitou bem.. epa fica complicado depois o cardozo regressa e faz dois golos e poem o kardec em xeq e ele nem se move mais agora corre risco de bazar"
É um mimo o espírito dos tempos.

terça-feira, 22 de março de 2011

NÃO GOSTO

desta coisa moderna das pessoas que dizem que fazem e que acontecem e depois nada. São os mesmos que combinam às certas e determinadas horas e cancelam em cima da hora ou nem sequer aparecem. São os que não retribuem as chamadas não atendidas ou as mensagens de voz quando sabem perfeitamente que são eles próprios que estão em falta e, para não lidarem com o seu próprio erro, não dão a cara, escondem-se, adiam, adiam indefinidamente. Falta de educação pura e simples. Falta de respeito puro e simples. Não gosto, definitivamente, desta forma moderna de existência onde os compromissos não interessam, a palavra não conta e ver além do próprio umbigo é uma miragem. Não sou, de facto, um gajo moderno. O Diabo que os carregue.

segunda-feira, 21 de março de 2011

MANIFESTO CONSUMIDOR

GENERATION GAP

Uns gritam que "no meu tempo é que era" enquanto outros lembram que "quando se fica mais velho se romantiza sempre que no meu tempo é que era". Se a primeira frase faz sobressair a ideia, muito Platónica, de que o avanço do mundo é decadente - uma degenerescência constante -, já a segunda, mais progressista, diz-nos que a degenerescência é, não no avanço da idade do mundo mas, sim, no avanço da idade de cada um: ao envelhecermos romantizamos os 'velhos tempos'; isto claro significa que nos tornamos menos objectivos, menos capazes de imparcialidade e menos eficazes na análise. Ao mesmo tempo, se os mais velhos desconfiam sempre dos comportamentos dos mais novos (que consideram menos correctos) então os mais novos estão sempre desculpados pois também os seus Pais chocaram os Avós, os Avós os Bisavós, etc. E aqui nasce a minha discórdia: não que não concorde com a ideia de que os novos desafiam sempre os mais velhos - uma evidência - mas porque lança a ideia de que, sendo esse desafio uma constante da vida - sendo normal -  então deverá ser sempre desculpável ou até mesmo positivo. E daqui vem a ideia progressista: de que de choque geracional em choque geracional avançamos rumo ao futuro, um futuro sempre melhor. O problema do raciocínio é o seguinte: haver sempre um conflito geracional não significa o mesmo que dizer, simplesmente porque ainda não nos matámos todos, que o resultado de tal conflito é sempre positivo. Muito pelo contrário: do conflito entre a experiência e a impetuosidade não deverá resultar a ideia de que a impetuosidade é sempre a melhor conselheira. Na verdade, os mais velhos, portanto mais experientes e sábios, talvez (e isto é uma proposta radical no mundo de hoje) percebam um pouco melhor a vida e cheguem à conclusão que não vale a pena andar a correr tão depressa porque, simplesmente, não há nenhum sítio assim tão importante para onde correr. É que quando o hamster percebe que a sua roda não vai a lado nenhum acaba a usá-la só para se manter em forma. E quanto ao resto do tempo? Bem, talvez possa servir para apreciar a paisagem do lado de fora da gaiola.

sexta-feira, 18 de março de 2011

MY MIND HOLDS THE KEY

Peter Gabriel, 'My Body is a Cage', Scratch My Back (2010)

NOSCE TE IPSUM

"Nosce te ipsum, Lê-te a ti mesmo. Pretendia ensinar-nos que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando pensa, opina, raciocina, espera, receita, etc., e por quais motivos o faz, poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me à semelhança  das paixões, que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança, etc., e não à semelhança dos objectos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas, esperadas, etc. Quanto a estas últimas, a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis, e são tão fáceis de ocultar ao nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas erróneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações."

Thomas Hobbes, Leviatã

quinta-feira, 17 de março de 2011

PARA LÁ DO BEM E DO MAL

Se de uma causa advém uma consequência que é, simultaneamente, má para uma pessoa e boa para outra então a verdadeira dicotomia universal nunca poderá ser entre o Bem e o Mal. Já no nosso cantinho, pela mesma razão, o que conta é a intenção; a vontade dos homens, portanto.

terça-feira, 15 de março de 2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

JÁ BASTA

O principal problema da sociedade política hoje, como sempre, é que, na perspectiva individual, as más práticas rendem benefícios superiores às boas práticas: o político honesto, incorruptível e cumpridor normalmente está em desvantagem para com o mentiroso (a mentira permite infinitos discursos contrariamente à honestidade que permite apenas um), corrupto (distribui benesses avulsas em troca de votos) e irresponsável (apenas olha ao seu interesse). O problema é que nenhum sistema aguenta indefinidamente a ser mal gerido por aqueles que se aproveitam dele para os seus próprios ganhos. E por essa razão, mais cedo do que tarde, entra em ruptura. No caso Português torna-se evidente essa ruptura. Poderia aqui enunciar inúmeras razões pelas quais o actual Governo é muito mau; fico-me por uma única simples e singela verdade: bons governantes não levam um país à falência. Adiante: a solução está sempre na capacidade de, face ao abismo, as pessoas terem a força e a coragem de dizer "Basta!" e arrepiar caminho. Para Portugal chegou essa hora; e chegou essa hora não porque não pudesse ter chegado antes - porque deveria ter chegado - mas porque não nos podemos dar ao luxo que chegue depois: aí será tarde demais.

quarta-feira, 9 de março de 2011

JORGE DE SENA, SINAIS DE FOGO


"Era como se um vírus que eu transportasse atacasse as pessoas, levando-as a atitudes extemporâneas, ou, talvez melhor, consentâneas não com o mundo de cada uma, mas com o que, sem que mesmo o soubessem, esse mundo tinha em comum, através de mim, com outros mundos igualmente privados e igualmente em crise. Ante aquele espectáculo de que o sobrinho dela desviava constrangidamente os olhos, e com a sala cheia de gente que saltara para fora da minha imaginação e se agitava de acordo com as fungações da senhora, eu interroguei-me sobre se seria mesmo um vírus que eu transportava, ou se tudo estava , talvez, obedecendo a uma música oculta, muito desafinada, que era a do mundo todo através de mim, na medida em que eu, saindo do sono da infância e da adolescência, descobria que a vida não era a consciência que encontrara quando me vira e me sentira cada vez mais um homem, mas aquela mesma intromissão de figurantes numa representação que, antes, imaginávamos representar sozinhos.Neste momento, o Macedo entrou, e eu percebi que a guerra civil, para que ele e outros pretendiam ir, não havia sido, e não ia ser, senão a terrível demonstração de que todos dependemos de todos, sobretudo para matar e para morrer, e de que não era eu quem transportava um vírus, mas a vida que chegara ao ponto de, daí em diante, não poder ser vivida senão como uma doença mortal e maligna, em que as pessoas se serviam umas das outras para satisfazerem a sua ilusão de que não eram para servir."

Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Guimarães 2009; p. 342

O AÇAIME

A felicidade humana reside na capacidade de equilibrar o animal emocional que há em nós com o estímulo racional. O estímulo racional - a razão fria e estática - é o caminho da lei universal que rege a vida, a consciência, a massa e a anti-massa; o animal emocional somos nós. Em suma: a razão é a trela da realidade partilhada. E o açaime também.

I'LL TAKE A QUIET LIFE

Radiohead, 'No Surprises', Ok Computer (1997)

O ELOGIO DO FRACASSO*

A compreensão é infinita: labirinto de vontades indefiníveis e profundas, nele nos perdemos na ânsia de que haverá sempre algo mais para fazer, algo mais para compreender, algo mais para concretizar. Mas tudo isso é uma ilusão fruto da incapacidade humana de simplesmente viver. A maior ilusão racionalista é o desígnio da profunda compreensão de nós próprios: a auto interpretação apenas serve até ao ponto em que temos de admitir a impossibilidade da concretização de tamanho objectivo; e assim ganhamos humildade, gratidão e paz. Mas se formos teimosos e insatisfeitos e não conseguirmos aceitar o facto de o todo, por ser o todo, sempre permanecer incompreensível para a parte (como poderia a parte compreender o todo?) e continuarmos a escarafunchar, então essa vontade compreensiva apenas nos fará perdermo-nos no mistério do 'eu' e arruinar a única coisa que colmata a pena máxima que é a morte: a felicidade dos homens. Tal como a vaidade não coabita com a felicidade também a vaidade do conhecimento explanada na cobiça da compreensão destrói a felicidade da aceitação. Ah!, elogiemos o falhanço garantido no que diz respeito à necessidade da compreensão! Elogiemos o fracasso da nossa racionalidade! Elogiemos a libertação máxima, portanto.

*Título roubado ao livro do João Freire.

segunda-feira, 7 de março de 2011

DA MATURIDADE

À medida que vou ascendendo (ou descendo, sabe-se lá) na realidade, compreendendo-a - tentando vislumbrá-la -, nos últimos tempos e de forma crescente e ininterrupta, torna-se cada vez maior o desejo pela vida simples e comum: quanto mais apreendo sobre a grandeza incognoscível do universo mais prezo as pequeníssimas coisas que fazem de nós animais humanos. Quase que parece que a harmonia e o equilíbrio entre a razão e a emoção se fazem através de um processo de soma zero: quanto mais longe vai a razão, mais terrena se torna a vontade. Isso ou - quiçá talvez precisamente por isso - se iniciou um processo de maturação: na compreensão da impossibilidade da compreensão, sobra a vontade de viver; no vislumbre do buraco negro racional o conforto da normalidade torna-se acolhedor. E o progressista idiota dá lugar ao conservador ponderado. Para que corres tu meu amigo se não tens para onde ir? A maior parte deles continua a correr do lado de lá da vedação rumo ao progresso, ao gelo quente e ao sol na eira e à chuva no nabal, o paraíso querem eles!; do lado de cá, eu aceno e digo-vos adeus: o paraíso, meus caros, é aqui,. Talvez debaixo de uma oliveira.

DIÁRIO DO PAPEL

Hoje foi um dia frutuoso em novas aquisições. Para trabalho: A Crítica da Razão Pura e também a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, ambos de Immanuel Kant e um pequeno livrinho que, dada a minha douta ignorância sobre os anteriores, me pareceu útil como complemento de seu nome 10 Lições Sobre Kant, de Flamarion Tavares Leite (se for mesmo bom, aviso); ainda mais um, Tratado Político de Espinosa que estou cheio de vontade de ler. Para lazer: depois do avassalador deslumbre com Sinais de Fogo que estou a terminar, arrebanhei toda a prosa que encontrei de Jorge de Sena, infelizmente apenas dois: Os Grão-Capitães, um livro de contos e O Físico Prodigioso, uma novela. Ainda trouxe um policial para oferecer (da ''nova Agatha Christie" que ao que parece agora é Sueca) e tive que me controlar porque já passara a barreira dos cem. Durante uns tempos não ponho um pé numa livraria.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O DIÁRIO DOS MOMENTOS PERDIDOS (V)

Desde que me lembro de existir que o Metro, aquele comboio que aparece vomitado por um misterioso túnel negro e sem fim, exerce um fascínio, um estranho e inexplicável fascínio, na minha mente. Talvez, no início, petiz iletrado ainda, vislumbrasse nele algo muito parecido com o comboio normal da linha de Cascais mas completamente diferente. Uma realidade alternativa, talvez, difícil de explicar mas a mesma sensação que tive ao entrar no apartamento da vizinha de baixo: era igual ao nosso mas com outros móveis, outros quadros, outros cheiros. Sendo igual, não deixava de ser diferente, como se o mundo criasse uma versão alternativa dele próprio logo ali a uns escassos metros de escadas. Talvez uns minutos depois aparecesse um outro petiz iletrado, igual a mim mas vestido com roupas diferentes, talvez, ali naquele mundo quase igual ao meu, estivesse um outro petiz quase igual a mim, um outro eu que não fosse eu. Era como se fosse um outro nível de um jogo de computador: as mesmas linhas, o mesmo cenário mas ora mudava a cor, ora mudava o animal contra o qual se lutava. Talvez seja isso: era a descoberta de um padrão, o mundo multiplicava-se em realidades que, sendo cada uma sucessivamente quase igual à anterior não deixava de apresentar  a sua própria diferença. O mundo é, de facto, bem mais complexo e diferente do que aquele petiz poderia no seu maior desvario sonhar; mas o facto de essa sensação da 'quase igualdade e alguma diferença' continuar a alimentar o meu fascínio só me demonstra que aquele pequeno petiz ainda vive em mim e que o mundo continua  ser muito mais diferente do que no meu maior desvario eu possa ainda imaginar. No fundo, vendo bem, o padrão desta estranha sensação sou eu próprio: sempre mas sempre quase igual a alguém que fui mas sempre um pouco diferente a cada momento que passa.
(Cont.)

DA PORTUGALIDADE E DO ESTADO

"Mais tarde, no recreio, tínhamos discutido o comunismo. Era a abolição da propriedade em todas as suas formas, o Estado tinha tudo, e era ele que dava as coisas de que as pessoas precisavam, e toda a gente era obrigada a trabalhar para o Estado, para pagar aquilo que recebia. As opiniões tinham-se dividido. Aqueles que eram filhos de funcionários do Estado não viam diferença nenhuma. Os que eram filhos de médicos, advogados, comerciantes achavam que havia diferença, porque uma pessoa não podia ganhar o que quisesse. E a discussão tinha ficado por ali, esfriando a pouco a pouco, abstracta, académica, longínqua."

Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Guimarães Editores, 2009, pp. 132-3

quarta-feira, 2 de março de 2011

NO IT'S NOT

The Shins, 'Caring is Creepy', Oh Inverted World (2001)

DO RACIONALISMO

Há um momento em que temos de escolher: ou se continua a escarafunchar na realidade implicando a ascensão - ou introspecção -  a um ponto, seja ele real ou imaginário, cada vez mais distante do mundo ou se assume que para pontos mais distantes do mundo sobra a eternidade e que mais vale aproveitar o bilhete. John Stuart Mill, esse cavaleiro da liberdade, arrependia-se no final da vida de ter perdido partes importantes da vida por ter permanecido sempre obcecado com os absorventes caminhos da razão. E esse é o ponto: a maior prisão da razão é a ilusão de que nos oferecerá a libertação da mundana realidade das angústias e temores emocionais. Mas esgotando a vida pelo jugo racionalista a única coisa que se obtém é a perda da identidade, ficando esta desmultiplicada  - destruída - numa amálgama de causas e consequências às quais não se vislumbra um fim, ou sequer um particular sentido; e a identidade, absurda e controversa, paradoxal e animal é precisamente o exercício máximo da liberdade, destruindo-a, perde-se tudo: quem não é, não pode ser, logo não pode ser livre. Paira, não vive; pensa, não decide. Stuart Mill, como amante da liberdade que era, deverá ter percebido isso muito bem: viver em liberdade passa por deixar correr as emoções e aproveitar a vida por mais absurda que muitas vezes ela possa parecer ao racionalista abstracto. Ou seja: a escolha passará sempre por compreender que não há felicidade fora do mundo das angústias e dos temores emocionais.

O EFEITO HOUSE


A mulher perfeita? Inteligente, bonita, honesta e, imagine-se, inocente. Agora está a aprender que toda a gente mente; não merecia tal coisa. Ainda há dúvidas de que o mundo corrompe?

terça-feira, 1 de março de 2011

DEEP BLUE

Damien Jurado, 'Everything Trying', Caught in the Trees (2008)

REALISMO AMOROSO

A relação mais feliz de todas, aquela que não falha na partilha nem no amor, o mais perfeito dos casamentos ou o mais feliz dos casais, acabará sempre, infalivelmente, em desgraça quando um dia um dos cônjuges morrer: não há amor que não acabe em tragédia, viúvos ou divorciados, no final, lixamo-nos sempre.

Addendum: O melhor é aproveitar, não?

DOS ISTAS

O desafio do racionalista é conseguir esquecer-se que um dia tudo vai acabar; o desafio do emocionalista é conseguir lembrar-se que provavelmente não vai morrer amanhã.

A RAINHA VENCIDA

"Para que a vida dos homens não fosse inteiramente triste e tétrica, Júpiter deu-lhes mais paixões do que razão - na proporção de um um grão para meia-onça. Além disso relegou a razão para um canto estreito da cabeça, deixando o resto do corpo entregue às paixões. À razão opôs ainda dois tiranos violentíssimos: a ira, que tem a sua sé no peito, com a própria fonte da vida que é o coração, e a concupiscência cujo império se dilata até ao baixo ventre. Quanto vale a razão contra estas duas forças reunidas é o que a vida comum dos homens satisfatoriamente nos mostra. A razão pode gritar até enrouquecer para fazer cumprir as fórmulas da honestidade; é rainha a que os homens não obedecem, a que os homens replicam com injúrias, até que emudeça ou se declare vencida."

Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura [XVI]

YES SON, THIS IS HOW WE NAVIGATED BEFORE GPS

O PODER DOS VALORES

Objectivamente haverá alguma distinção de facto entre o humano oferecido no altar supremo dos Maias, esquartejado e sangrado, para apaziguar os deuses enfurecidos e garantir as benesses divinas essenciais à manutenção da sua própria civilização (ordem política) e o outro, também ele humano, que de igual modo oferece a vida em nome da supremacia de uma determinada ordem política no altar supremo da guerra moderna? Ou, por outro lado, não representarão esses dois pobres desgraçados na mesma exacta medida o sacrifício do indivíduo pela manutenção do modo de vida da sociedade a que tiveram o infortúnio de pertencer? Esse é o poder da crença humana nos valores: o de morrer pelos outros de livre vontade ou de matar alguém sem sentir um peso na consciência.

O MAL

"Examinai a vida dos melhores e mais fecundos homens e povos e perguntai-vos se uma árvore que tem de crescer orgulhosamente em altura poderia dispensar o mau tempo e as tempestades; se o desfavor e os obstáculos exteriores, se algumas espécies de ódio, obstinação, desconfiança, dureza, cupidez e violência não fazem parte das circunstâncias favoráveis sem as quais dificilmente se pode conceber um grande crescimento, mesmo da virtude. O veneno capaz de deitar por terra uma natureza mais fraca é fortaleza para o homem forte - e ele também não lhe chama veneno."

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, [19]