quarta-feira, 9 de março de 2011
JORGE DE SENA, SINAIS DE FOGO
"Era como se um vírus que eu transportasse atacasse as pessoas, levando-as a atitudes extemporâneas, ou, talvez melhor, consentâneas não com o mundo de cada uma, mas com o que, sem que mesmo o soubessem, esse mundo tinha em comum, através de mim, com outros mundos igualmente privados e igualmente em crise. Ante aquele espectáculo de que o sobrinho dela desviava constrangidamente os olhos, e com a sala cheia de gente que saltara para fora da minha imaginação e se agitava de acordo com as fungações da senhora, eu interroguei-me sobre se seria mesmo um vírus que eu transportava, ou se tudo estava , talvez, obedecendo a uma música oculta, muito desafinada, que era a do mundo todo através de mim, na medida em que eu, saindo do sono da infância e da adolescência, descobria que a vida não era a consciência que encontrara quando me vira e me sentira cada vez mais um homem, mas aquela mesma intromissão de figurantes numa representação que, antes, imaginávamos representar sozinhos.Neste momento, o Macedo entrou, e eu percebi que a guerra civil, para que ele e outros pretendiam ir, não havia sido, e não ia ser, senão a terrível demonstração de que todos dependemos de todos, sobretudo para matar e para morrer, e de que não era eu quem transportava um vírus, mas a vida que chegara ao ponto de, daí em diante, não poder ser vivida senão como uma doença mortal e maligna, em que as pessoas se serviam umas das outras para satisfazerem a sua ilusão de que não eram para servir."
Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Guimarães 2009; p. 342
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