sábado, 26 de fevereiro de 2011

DA VULGARIDADE

"Às naturezas vulgares todos os sentimentos nobres e generosos parecem destituídos de finalidade e, por isso, se lhes afiguram, em princípio, suspeitos: pestanejam quando ouvem falar de tal coisa e parece quererem dizer: «Com certeza que se esconde aí uma boa vantagem; não se pode ver através de todas as paredes.» Mostram-se invejosos do homem nobre que suspeitam de procurar os seus interesses por caminhos ínvios."

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, 3

WHEN THE BARS WERE CLOSING DOWN

Vaya Con Dios, 'Don't Cry for Louie', Vaya Con Dios (1988)

QUE VALE MAIS A PENA ESCONDER?

"Qual de vós seria tão estulto [louco] que deixasse na rua, o ouro e a pedra preciosa? Nenhum, por Hércules. Iríeis antes escondê-los nos aposentos impenetráveis, e se não bastasse, nos escritórios secretos dos cantos da casa; deitaríeis à rua as coisas invaliosas. Ora se o que é mais valioso é o mais recôndito, e o mais vil o mais exposto, a sapiência que não se esconde é mais vil do que a estultícia que permanece recôndita. Aceitai agora as palavras que queria dar por testemunho: «Melhor é o homem que esconde a sua estultícia do que aquele que esconde a sapiência»".

Erasmo de Roterdão, O Elogio da Loucura, LXIII

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

DEDICADO AOS SENHORES METROSSEXUAIS

O ELOGIO DA VERDADEIRA SABEDORIA

Há pretensos sábios que se irritam com os ignorantes devido, precisamente, à sua ignorância. Haverá, no entanto, quem seja ignorante por opção? Soubesse um ignorante da sua ignorância e talvez quisesse abraçar a abertura da sapiência. Na realidade, o ignorante opina sobre tudo, irritando com isso quem se acha sábio precisamente porque descobrindo a careca do ignorante percebe que o ignorante fala do que não sabe. Mas a força das opiniões de bancada, as certezas do filósofo de café ou os dictates do governante de sofá decorrem, não de quem se acha ignorante mas precisamente de quem acha que sabe tudo: não será a maior ignorância a mania da sabedoria? O alienado, o burro ou o estúpido, saberão eles o que é ser outra coisa do que burro, estúpido ou alienado? Dificilmente. Falta o preguiçoso (o ignorante por opção dirão alguns); mas da preguiça não se faz a ignorância: quantos sábios, génios ou especialistas não se deixaram mergulhar nas tranquilas águas da preguiça? A preguiça faz-se da ausência de necessidade (quem não precisa, não trabalha), não da ausência de conhecimento. Aliás, será mesmo da ausência de conhecimento que se faz a ignorância? Quantos enciclopédicos sabedores de tudo e mais umas botas não demonstram uma ignorância igualmente enciclopédica nas mais elementares matérias da vida? Quantos doutorados, mestres e licenciados não destilam todos os dias o mais profundo desconhecimento sobre o que é a vida e o significa ser Homem? De quantos sábios, sapientes especialistas, de quantos filósofos-rei, de quantos génios e visionários não se fizeram as maiores desgraças da Humanidade? Quantos sapientes não são, à vista despudorada de todos, uns perfeitos idiotas, ignorantes sem vergonha, sabichões chicos-espertos que tendo a mania que tudo sabem só tornam evidente a sua própria ignorância? Por outro lado, quantos velhos iletrados, quantos guardadores de porcos, vacas ou cabras com pouco mais do que a sabedoria da sua própria assinatura, quantos perfeitos analfabetos não há por aí que, a quem os queira ouvir, entre dentes e enlevados pelo sereno sussurro do vento que passa por entre as folhas de uma oliveira  nos inundam com a mais profunda e eloquente interpretação do sentido da vida? Ah, pois é! Para interpretar a vida basta viver e, talvez, talvez, quiçá aprendam mais aqueles que vivem como homens que são do que aqueles que, escondendo-se atrás dos conhecimentos dos outros não aprendem nunca a viver; ah, tristes crianças armazenadoras de informação, pobres papagaios repetidores do que verdadeiramente não chegam a compreender. Se a ignorância é a arrogância de se achar um sabedor-de-tudo não será a maior arrogância delas todas achar que a vida dos homens será diferente da vida de todos os outros pobres miseráveis que por aí se arrastam? Não aprendemos nós, que nem os macacos, os cães ou mesmo os porcos pelo universal esquema da tentativa e erro? Não é a falhar, a errar, a sofrer que aprendemos a não errar, a não sofrer, a não falhar? E não é a aprender que nos tornamos nós mais sabedores? Assim sendo, não será pela miséria, pelas agruras, em suma: pelo sofrimento, a dor e a infelicidade que aprendemos a viver em felicidade sem dor e com menor sofrimento? É que se assim for, se, de facto, fizerem estas pobres e ignorantes palavras algum sentido, então seremos forçados a concluir que a verdadeira distinção entre os sábios e os ignorantes se faz entre uns, os corajosos sofredores que com essas penas e sacrifícios oferendados no supremo altar da existência humana ascendem ao sereno e temperador reconhecimento da vida e os outros, os medrosos, os que com um inusitado receio do sofrimento, os eternos felizes, os rejeitadores de dor (nem sequer a do envelhecimento escondido atrás do botox), esses, recusando o sofrimento, não aprendendo nunca, condenam-se à eterna infantilidade e, por essa mesma razão, à maior infelicidade delas todas: a verdadeira ignorância; aquela que de tão grande nem sequer permite ao infeliz reconhecer-se a si próprio no espelho da vida.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A VERDADE AO VIRAR DA ESQUINA

                                                                            Daqui.

PERSISTÊNCIA DA SAUDADE

O tempo passa mas há coisas que ficam: principalmente se a coisa que fica for a ausência da coisa que em tempos foi.

O EFEITO QUÂNTICO

Algures entre os desígnios da vontade humana e a serenidade da aceitação do destino fica o livre arbítrio do feiticeiro do cosmos; que é como quem diz: no final, esta merda é mesmo uma questão de sorte e de azar. Falo do amor, claro.

LEVE SUSPEITA

Tenho a leve suspeita de que a minha máquina de lavar anda a querer atazanar-me o juízo: agora deu-lhe para se alimentar de meias; ainda por cima tem a mania que é fina e só leva uma de cada par.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A PROPÓSITO DO PEDIDO DE DEMISSÃO DE TODA A CLASSE POLÍTICA

Anda por aí um email a circular há uns dias que pede a "demissão imediata de toda a classe política". Há dois elementos interessantes nesta exigência: primeiro o facto de ser imediata; é, agora, logo, neste momento que a classe política tem que ser demitida; o segundo elemento interessante é o facto de ser toda, ninguém se safa, todos os políticos são iguais, são todos maus e todos, já, têm que ser corridos. Do primeiro elemento, o já, passa uma ideia que é muito normal nos dias de hoje: as pessoas quando querem algo, querem já; um novo telefone? Já. Um novo direito? Já. Uma nova classe política? Já. Que nem os meninos pequeninos, quando apanham uma nova moda, um novo desejo, quando vêem algo que querem, querem já. E arrumar a cama? Já vou. Já fizeste os trabalhos de casa? Já vou. Foste votar? Já vou. Direitos, já! Deveres, logo se vê se me apetece. A infantilização crescente das vontades é um dos maiores legados do consumismo marquetistóide que nos afunda num carrossel de uma permanente ânsia de querer algo novo. E anos e anos alienados da política, do voto, do dever cívico da participação política resultaram num conjunto de maus governantes, incompetentes completos, que nos trouxeram a este buraco. Anos e anos a achar que a política não é nada comigo, anos e anos sem perceber que sem política sobra a miséria. E de repente, quando aperta no bolso, acorda-se e, claro, uma nova classe política . Do segundo elemento sobra a generalização habitual da superficialidade maniqueísta modernista: é que não há um político que se safe. São todos, sem excepção, maus. És político? Só podes ser um ladrão. Estas simplificações próprias da ignorância, o tomar a parte (os políticos  maus e mentirosos) pelo todo (todos os políticos)  é o primeiro passo da perseguição política. És político? És corrido. A seguir? Preso. A última vez que demitimos uma classe política inteira circulavam mandatos de captura em branco - já se esqueceram? - e o meu Pai acabou a defender a casa de caçadeira na mão. Autoritarismo ditatorial lá vamos nós. Da ignorância não sai mais nada do que a perda de liberdade, mesmo que seja em nome da 'honestidade', da 'justiça' ou, até, da própria 'liberdade'. Uma sociedade livre e justa, próspera e feliz, uma sociedade desejável constrói-se todos os dias e não apenas quando as coisas correm mal; a boa sociedade conquista-se (e mantém-se) pelo trabalho, participação e vontade, não se exige caprichosamente quando nos apetece. É que os revolucionários, quando aparecem, são sempre bem intencionados - ou será que a história não ensina nada? - o pior é depois: é que ainda não se inventou um sistema para além do bom senso que distinga o certo do errado. E bom senso é coisa que os revolucionários, normalmente, não têm.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

OS DÉSPOTAS

Uma das grandes razões para a mais perfeita incompetência política é o ego; quem se ache muito cheio de si próprio, quem se considere o salvador da pátria, quem se defina pelo seu sucesso eleitoral (se votam em mim é porque eu sou bom) não quer esvaziar-se: não quer ser um 'zé ninguém'. Para quem se define em função do poder que tem aqueles que não têm poder serão, forçosamente, ninguém, inexistentes (sem o poder, porque assim se definem, não sobra nem pode sobrar nada). Mas, infelizmente, é esta uma estrada sem fim porque, por dentro, no íntimo, sem a aceitação dos outros (imposta pelo poder) sobra o vazio da ambição sempre por cumprir (há sempre mais um bocadinho de poder que eu, porque sou o maior, mereço). E assim nascem os déspotas: não concordas comigo? Como é possível se eu estou sempre certo? Eu, que sei, decidirei por ti que estás obviamente enganado. Criticas, tu? Então estás contra mim. O conteúdo não interessa a quem não o tem; sobra a forma, o teatro, o vazio das palavras que escondem a mais profunda insegurança de quem apenas aceita o pensamento único: o seu (se eu sou o grande líder aceitar o pensar diferente como potencialmente válido significa poder estar errado; e eu, o grande timoneiro não posso estar enganado pois então perderia o meu poder). Perder o poder não é uma opção pois sem o poder não sobra nada: sem a liderança, o viciado no poder sente-se o tal 'zé ninguém' que tanto despreza por isso, quando se sente acossado, grita, esperneia, injuria sem nunca parar para pensar no monstro em que se está a transformar. E não pode parar, não pode perder. E as linhas do aceitável turvam-se perante a bebedeira , a necessidade, do poder. O déspota já não é um homem: é um corredor deslumbrado para lado nenhum. Num governo despótico são escravos do senhor os que são mandados mas os que mandam são ainda mais escravos: escravos da sua ambição, escravos do seu ódio, escravos da sua miseranda infelicidade; e por isso gritam e esperneiam como os infelizes que são.

AS PEDRAS NÃO FLUTUAM

"Ter opiniões definidas e certas, instintos e paixões e carácter fixo e conhecido - tudo isto monta ao horror  de tornar a nossa alma um facto, de a materializar e tornar exterior. Viver num doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio é o único modo de vida que a um sábio convém e aquece."

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego

ON REPEAT

Amy Winehouse, 'Back to Black', Back to Black (2006)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

PORTUGAL, A TERRA DOS CAMPEÕES

Megalomania. Portugal é um país de megalómanos: queremos ser os maiores do mundo, perdemo-nos em sonhos inconcretizáveis e deprimimo-nos quando a realidade nos bate à porta. No entanto, a megalomania, como todas as patologias, com um bocado de sorte pode funcionar a favor do doente; de que outra forma se explica que nos idos de mil e quatrocentos um cotomiço despovoado armado com uns pinheiros descascados e umas espadas tenha ido conquistar o mundo? Se não era um sonho próprio de um bando de megalómanos, então não sei o que seria. Pena é que a megalomania tenha dado certo logo tão cedo na nossa História. Por causa disso, hoje em dia, todo e qualquer projecto megalómano é aceitável porque, que nem os macacos, já percebemos que a megalomania pode resultar: já a vimos resultar. É a vida, azar do destino, problema o nosso. Assumamos: loucos somos todos e cada povo escolhe a sua estultícia própria e até aí nada de mais, nada de grave. Aliás, eu como megalómano Português que sou ainda acredito nisto. Acredito que isto vai resultar, acredito na felicidade lusitana, acredito que este país ainda será um exemplo no mundo e, já agora, que o Benfica será campeão europeu. O problema não está aí, não há mal nenhum com a esperança. O problema está naqueles que se esquecem de que quem gasta mais do que ganha vai à falência e que um país falido não será nem o melhor nem o pior do mundo: será um país pobre e falido. Não compreender isto é alimentar a fornalha da megalomania com barras de estupidez e, aqui sim, infelizmente, reside o problema: é que essa cabra, a estupidez, só traz é desgraças. Principalmente a quem se acha o maior do mundo.

OS NOVOS AFECTOS (ou: do modernismo)

                                                                             Daqui.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

DA COBIÇA

A cobiça é a maior das prisões. Não é pelo desejo de um bem em si mesmo que ele é cobiçado: é por significar uma dada superioridade daquele que possui o tal objecto em relação ao que não o tem. Querer aquilo que os outros também têm é o grito mais básico pela igualdade. No entanto, o querer ter o que os outros têm apenas decorre da necessidade de não se ser menos do que os outros são; é a identificação do 'ser' com o 'ter', portanto. E daqui decorrem duas coisas: a diminuição de um face ao outro e a ilusão de que obtendo algo se pode ser uma coisa diferente daquilo que se é. Da primeira vem o ódio (contra si próprio porque se sente pequeno e depois, consequentemente, contra os que julga serem maiores); da segunda o materialismo acéfalo, o consumismo desenfreado e o vazio. Ambos os caminhos prescrevem uma infalível receita de infelicidade.

DESPOTISMO

"Há um governo exercido segundo o interesse dos governantes e outro no interesse dos governados. O primeiro é despótico; o segundo é um governo de homens livres."

Aristóteles, Política, VII, 1333 a 5

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

NAS TERRAS DE LÁ

Platão perguntava-se se entre um rei que sonhasse doze horas por dia que era escravo e um escravo que sonhasse doze horas por dia que era rei se seria qualquer deles mais escravo ou rei do que o outro; faz sentido. Já eu pergunto-me se aqueles que partiram não continuarão vivos enquanto nos aparecerem no mundo dos sonhos. Talvez nesse limbo em que uns vivos e outros mortos se encontram, se abraçam e partilham a a vida de uns e a morte de outros, talvez nesse limbo se encontrem os de lá com os de cá e descubram, todos os dias, que uns são os sonhos dos outros e que, por essa mesma razão, nem os mortos estão mortos nem os vivos vivem. Talvez, pela noite, sejam eles os sonhos que habitam em mim e, pelo dia, seja eu o sonho que  percorre a noite deles. Sei, pelo menos, que vou encontrando quem não tenho pelas terras de lá. É assim a vida, felizmente: quando se acabam os dias ao menos sobram-nos as noites.