sexta-feira, 17 de setembro de 2010

MANIFESTO ANTI-PERFECCIONISTA

Escovo os dentes vai para mais de trinta anos; um feito, sem dúvida. Se é verdade que no início, fruto de um desejo mais apressado ou simples impaciência, a meticulosidade empregada na tarefa deixaria algo a desejar, a compreensão trazida pelo final da infância trouxe o ímpeto perfeccionista à referida tarefa. Foi tamanho esforço recompensado de forma abundante com a total ausência de cáries  - um monumento à vontade humana, certamente - e um sistema metódico, mecânico e infalível na arte de bem vassourar as incisivas, caninas, molares e demais tachas estomatológicas. Um orgulho! No entanto - e teria de haver um entanto se não nada haveria digno de especial reporte -, dou por mim a notar que volta não volta, sem especial cadência ou padrão de repetição, em certos dias que nada trazem de especial ao mundo - a não ser, porventura, aquilo que aqui se relata - inunda-me a mente a suprema vontade criadora e vislumbro uma pequena quase imperceptível potencial alteração no quase-perfeito sistema que atrás referi. Devo admitir que não deixo de ser surpreendido pelo facto de ver tal sistema aperfeiçoado, reformado ou mesmo corrigido: pasme-se o mundo que nem aquilo que faço para mais de três esforçadas décadas conseguiu encontrar ainda o seu mais elevado estado, o magnânime ponto mais alto do ensaio humano, o estado de proto-divindade, entenda-se: a perfeição. Vá-se lá compreender os mistérios do mundo. Passado o lamento, avante com o complemento! Que possa esta microscopização dentária inundar as mentes com dois pensamentos estritamente complementares: primeiro que a tentação de atingir a perfeição será, como se comprova pelo presente relato, um objectivo inatingível, inalcansável e impossível; poderemos nós, humanos cheios de dentes, almejar o impossível? Certamente, mas pelo menos com a mais fina certeza de que todos os esforços, todas as agruras e demais sacrifícios, todos  eles, sem excepção, se revelarão infrutíferos e que tamanho sonho para sempre se quedará irrealizado. O segundo pensamento prende-se com o facto de, alertado para tamanha inutilidade esforçada, nem o próprio desejo de perfeição ser algo de profundamente desejável: afinal, poder-me-á alguém explicar, de que me servirá tamanha empresa, tamanho ansiado desejo que leve à minúcia e à pormenorização concentrada numa tarefa repetida e pensada por mais de trinta anos? Quererei porventura ser eu o cadáver com os dentes mais brancos do cemitério? Ou, quiçá, participar numa doação póstuma depois de retirados todos os molares do cadáver em pré-decomposição para algum colar de, vamos lá imaginar, uma nova moda futura onde adereços de presas humanas à volta do gargalo seja um desígnio de estilo avant garde? Talvez ainda, sabe-se lá, terminarem os objectos de tamanho labor numa vitrine com uma pequena placa onde se pudesse ler: "aqui estão os dentes mais brancos do mundo, os mais bem lavados, os mais metódica e escrupulosamente escovados do século XX e XXI?" Nem pensar! Recusarei tais coisas! A partir de agora, assumo-o com solenidade, considerando a inutilidade do esforço aperfeiçoador e a esterilidade do objectivo, será noutras coisas que pousará a mente durante o acto dentífrico. Quebrarei os jugos da vontade perfeccionista e os ímpetos da vontade humana! Soltarei as amarras do desejo primário e a prisão da paranóia racionalista! Assuma-se: a perfeição que se foda. Enfim, a Liberdade!

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