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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

MOMENTO AFRICANO (EXCERTO DO SEGUNDO LIVRO)


Imagem tirada daqui.

"Eram sete e meia da noite. Estava noite. Quente. A lua, essa entidade que nos habituámos a apelidar de mentirosa, já em África reformula-se, desdiz-se e mostra-nos que, afinal, não tem hábitos de mentira, pelo menos ali; pelo contrário, tal como tudo aquilo que rodeia quem coloca o seu pé em África, qualquer um dos dois, seja o esquerdo ou o direito, seja quando for, aquilo que se sente, de imediato, sem tempo a perder, sem hesitações, é a honestidade que nos bate directa e violentamente no peito, é um continente que grita, exclama a sua existência e a sua essência, espalhando-a aos quatro ventos, oferecendo-a aos seus deuses e ficando nós, os seus visitantes, com os ecos das oferendas que nos inundam de sensações novas, não estamos habituados, não estamos não senhor, não estamos habituados a honestidade franca e directa do que é bruto, forte e sem rodeios, da falta de maneiras, da ausência de pudor em revelar as suas misérias. Miséria há no mundo inteiro. Mas nessa Europa ela esconde-se envergonhada, ela vira atrás de uma esquina perdida e invisível, não assumida e disfarçada. Em África ela assume-se com abertura e naturalidade. Porque talvez a riqueza faça ainda mais do que esconder os que atrás dela andam mas não lhe chegam, talvez ela faça pior, não saberemos nunca se é dos tempos ou das vontades, não sabemos se é da terra ou riqueza, sabemos nós que os tempos de fausto e soberbo consumismo são também tempos de apagada e vil tristeza, são tempos de triste e apagada degeneração; mas não em África. Em África não. E é no momento que respiramos aquele ar pela primeira vez que tal, estranho e surpreendente facto nos apanha, desprevenidos e incautos, a olhar de esguelha, o que é que se passa aqui, onde estou eu, quem sou eu. Logo. Ali. Naquele primeiro e inesquecível momento. E o facto de África não perder tempo a dizer-nos o que é só atesta mais a sua profunda honradez. Moça proba, íntegra e séria, pejada de dignidade e virtude, pura e casta na sua pudica decência mostra-se orgulhosa da sua honestidade. E tamanha honestidade é essa que nem a lua nos mente. E era essa lua modesta, leal e incorruptível que banhava de luz quem se atrevesse, naquele início de noite, a experimentar o mistério das trevas espessas de Moçambique, trevas invadidas pelo calor opaco e pastoso áfrico. E não só: é uma noite inundada pelo receio
próprio de quem não é dali
de ser picado pelo célebre mosquito, o malárico, o malandro, o mensageiro da doença e a eterna personificação do desconhecido. Medo do medo. Medo de tudo e de todos. Medo de nós próprios. Medo do vazio. Mas, tal como tudo na vida, assim se fazem as estórias de cada um, desde os mais pequenos infantes até aos mais velhos anciães, é precisamente de superar os medos e aprender a gozar os riscos da vida que se fazem as felicidades, sejam elas pequenas ou grandes, pensadas ou sentidas, ou ainda, sonhadas ou vividas, sejam elas quais forem, a única coisa que as une na sua essência, aquilo que lhes é comum é precisamente o facto de se ter que superar o medo para se ser feliz, ou, melhor ainda: o facto de não haver pessoa feliz tolhida pelo medo. E era essa transcendência do medo que alimentava aquela lua verdadeira e, nela reflectida, resplandecia o reflexo de um continente perdido no tempo, algures entre o passado de colonial fausto
para quem coloniava
e o incerto futuro sem destino escolhido. E era esse sentimento latente, que brotava, tal como todas aquelas acácias em flor, do chão encarnado que inundara xxxxx ao longo dos últimos dias e que, mesmo no auge da sua divagação, lhe transmitia a estranha e paradoxal impressão de estar em casa. Estava em casa porque também ele se sentia verdadeiro, honesto e à vontade consigo próprio. Também ele não tinha agora um destino definido. Também ele tinha um fausto passado. Também ele estava perdido no tempo."

quarta-feira, 29 de julho de 2009

UM EXCERTO DO SEGUNDO LIVRO (AINDA A MEIO)

"O Zé correu rapidamente em busca daquela bola colorida. Teve como principal problema o facto dela ter resvalado para fora da varanda e, caprichosamente, ter ido anichar-se num tufo de cactos. Ora, isto de as plantas serem muito giras até pode ser verdade mas, também não deixará de ser certamente absolutamente verídico o facto de um aglomerado de cactos, essa planta desconfiada e super protegida, vegetal armado até aos dentes, enfim, não deixará de ser verdade que tal aglomerado de picos selvagens representa um grande problema para um bípede humano de apenas cinco anos. Isto para não falar ainda do maior problema que tais aparelhadas verduras significam para uma pequena bola de plástico, de um frágil objecto falamos agora, uma vulnerável coisa bastante atreita às complicações inerentes à junção da sua ténue camada plastificada que impede o ar nela contido de fugir para a atmosfera, ou seja, uma bola é uma bola porque tem ar e, tal como as pessoas, se o perder a sua existência cessa, acaba-se o jogo e a brincadeira e a pobre bola conhecerá de forma absolutamente infalível o fim último de tudo o que existe e deixa de o fazer, ou seja, é como quem diz, passar a sentir na pele o triste ostracismo dos vivos que
como todos sabemos
não querem coisas mortas ao pé de si, claro que não, uma bola furada vai para o cemitério de todas as bolas, exacto, o caixote do lixo. O que nós não nos poderemos aqui esquecer é que para uma criança de cinco anos, falamos novamente do Zé, a bola é muito mais nova, tem apenas um mês, talvez uma curta idade, não se sabe, isto dos ciclos de vida de uma bola, principalmente das pobrezinhas que nem têm direito a pipo de reenchimento, cabedal e fios de costura, principalmente para essas, se calhar, sabe-se lá, talvez um mês numa vida de bola não seja assim tão pouco. Mas a questão não é essa. É que para o Zé a bola tem mais vida do que um tufo de verduras cheio de picos. A primeira brinca com ele, salta, foge, deixa-se apanhar, interage e permite muita brincadeira. Já os segundos, os tais beligerantes cactos, esses só chateiam, picam e magoam, pior ainda, são causadores de um grande número de baixas na comunidade das bolas. Assim, para o Zé, o que era importante era salvar a sua nova bola preferida de ser terrificamente esventrada às mãos pérfidas, vis e torpes dos famosos cactos assassinos.(...)
E foi sozinho que o temerário petiz se dirigiu para o canteiro por debaixo da varanda onde se via, bem lá ao fundo, um objecto redondo e pintalgado de azul e encarnado. Parando em frente aos cactos, dedicou-se o miúdo a estudar a situação. Procurando o local mais desprovido de picos pensou que conseguiria alcançar a bola, pelo que gatinhando, começou a percorrer o curto mas penoso caminho que o separava do motivo de tanto esforço. Ao começar a penetrar a densa floresta de espinhos, cedo percebeu
a dor aguda causada pelo contacto com dois picos ajudou
que não conseguiria alcançar os seus intentos daquela forma. Lembrou-se, então, de ir buscar uma vassoura para tentar puxar a bola para junto de si. É assim que os humanos fazem, quando Maomé não consegue ir até à montanha, arranja-se tecnologia para fazer que a montanha vá até Maomé. Nem que a tecnologia em causa seja algo de milenar existência, um singelo pau. Foi na busca por uma vassoura, já tinha visto o seu pai fazer isso, que o Zé se dirigiu para a arrecadação, era do outro lado da varanda, do lado de fora da casa. Chegado lá, pegou na vassoura e estava ele pronto para se vir embora quando reparou na existência de um objecto mais comprido que a vassoura. Pois. Se queremos chegar a um sítio difícil, quanto maior for o objecto auxiliar, mais fácil se torna a tarefa. Foi assim que o Zé, armado de uma pesada enxada, arrastou-se até ao canteiro, a esperança invadia-o, estava certo de que conseguiria resolver o imbróglio.
Chegado lá começou o miúdo a empurrar o cabo da enxada para o fim do canteiro, até aí tudo bem, nada de mais, a enxada era pesada mas o pequeno lá conseguiu. A dificuldade residia agora em conseguir levantá-la segurando apenas na extremidade. Desígnio simples para adultos e jovens, nada mais fácil e banal, mas tarefa impossível para aquele muito jovem petiz, não conseguia, bem tentou o pobre coitado mas viu as suas esperanças esvaírem-se num esforço inglório e absolutamente inútil. Enfim. Bufou o miúdo, irritou-se com a situação, porque é que o raio dos picos estão ali, que merda, bolas, fosga-se, porra para isto, o que quiserem, se a fúria de um singelo fluxo de existência humana matasse, aqueles cactos já teriam o enterro encomendado e estariam a esta hora a encontrarem-se com o seu criador, com o seu deus, exageros e devaneios literários, sabemos lá nós quem é que os cactos acham que é deus, mistério insondável, talvez o seu deus seja o homem de boné e enxada que lhes dá água e faz a poda. Já esta irritante criança deverá ser o diabo em pessoa, anda ali a espezinhar as suas raízes, a espetar paus, a incomodar e a prejudicar tão pacatas criaturas, é isso mesmo, os cactos só podem ser apelidados de pacatos porque só fazem mal a quem lhes mexe, e mesmo assim só se lhes mexer com muita força, toda a gente sabe isso, um pico tocado com gentileza não faz mal a ninguém.
Viu-se o Zé forçado a deixar a enxada para trás de si, não tinha utilidade nenhuma, começou a tentar novamente ir ele próprio atrás da bola, aguentou, um, dois e três picos, já sangrava de um braço, corajoso continuou ele, mas chegado a um ponto percebeu que não conseguiria ir mais longe, triste sina a do rapaz, nada a fazer, teve de voltar para trás em marcha atrás, releve-se o pleonasmo, é parecido com o subir para cima, a diferença é que queríamos mesmo referir o facto do miúdo vir em marcha atrás, à ré se preferirem, lá foi ele, andou, andou e saindo por fim do ignóbil canteiro, levantou-se, que desgraça, quando se punha de pé, o seu pé direito apoiou-se na pá da enxada, que coisa desgraçada, já adivinham o que aconteceu, claro, quando fez força para se levantar apoiado em tão perigoso instrumento, a enxada não gostou e ao ser pressionada na parte de baixo, o respectivo pau levantou-se num ápice, é a teoria física das alavancas que tanto jeito deu a tantos humanos durante tanto tempo mas que aplicada aqui apenas resultou no pau a bater na cabeça do Zé, que horror, levou o miúdo uma paulada, os sentidos abandonaram-no e caiu ele desamparado, que terrífico acidente, em cima dos cactos, vá lá os olhos estavam fechados, espetou-se ele por aquele canteiro a dentro, queda por knock out logo ao primeiro round, grande vitória da enxada Tyson, estava o miúdo a dormir e a sangrar por todos os lados deitado naquele canteiro.
Nunca mais o Zé se esqueceu daquele dia, o dia em que abandonado, a tentar salvar uma bola, acabou no hospital a tirar catorze enormes espinhos de cacto da pele e a levar cinco pontos na cabeça. Assim foi, tivesse o pai ou a mãe ajudado e tal coisa nunca teria acontecido, foi nisso que o Zé pensou, nunca esqueceu, foi ali que percebeu que se queria fazer alguma coisa da vida teria de o fazer sozinho."

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

EXCERTINHO

"A morte apresentava-se-lhe como um ser indesejável que entrava sorrateira e silenciosamente pela porta de trás de sua casa, um ser trajado a negro e armado de uma gadanha, um homem
ou talvez uma mulher
sem rosto, que lhe agarrava pelo braço e o puxava, vens comigo, gritaria essa sinistra personagem, não tens safa, vens comigo para onde eu quiser, e o xxxxxx, tal como num profundo e terrífico pesadelo, quer espernear, quer gritar, quer fugir e não consegue, aqueles braços por debaixo do negro manto da Morte não deixam, ele não vai a lado algum a não ser para lado nenhum.
Para os homens o que a morte traz de complicado é o facto de quebrar a normalidade das coisas. Convenhamos que morrer não é normal. E esse é que é o problema. É que se morrêssemos várias vezes, então mesmo que nos assustássemos à primeira ou ainda
para os mais medrosos
à segunda, lá para a quarta ou a quinta vez a morte já não teria nada de novo. Em vez de fugirmos dela como o diabo foge da cruz, até acabaríamos por aceitar o inevitável com calma e serenidade. Eventualmente
para os mais aventureiros
até se armaria, aquele que iria morrer outra vez, em galanteador de canto de escada e convidaria a Morte para um café ou um copo de vinho, afinal personagem tão singular desperta interesse, e o que desperta interesse dá vontade de conhecer, o que convenhamos é complicado de fazer a não ser que se esteja vivo. Então Dona Morte explique lá que estória é essa de ser feita só de osso, não tem pele, como é tal coisa possível, talvez ela respondesse, é lixado pá, é mesmo lixado, no inverno faz frio, sabes que eu trabalho todos os dias, faça chuva ou faça sol, coisa complicada, o reumatismo é uma merda, experimenta lá andar para aí a matar pessoas com os ossos a gemerem ou cheio de bicos de papagaio e logo vês o que é bom para a tosse. E a Morte, de um trago só, beberia o copo três de vinho, licor que escorreria pelos seus ossos pingando que nem manchas de sangue no chão, afinal quem tudo quer nem tudo pode, e nem a Morte, capaz de se vencer a si própria porque é a única coisa que é imortal, nem ela mesma pode tudo, à pois é, reste-nos essa consolação pode a Morte levar-nos a todos mas o sabor de um bom copo de vinho, isso é um segredo que vai connosco para a cova."

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

UNO EXCERTO MÁS

"Curiosamente, facto estranho e que merece a mais atenta e precisa investigação, é precisamente de imposições sobre o que havemos e devemos de fazer que se fazem as nossas vidas. É de conselhos sobre o bom que tudo pode ser se fizermos, acreditarmos, seguirmos, concretizarmos ou comprarmos o que quer que seja que nos estão a vender. E vendem mesmo. Talvez a grande característica dos nossos tempos, vidas de suposta e desejada liberdade, seja a grande quantidade de pessoas que se dedicam à venda, ao lucro, ao marketing, pessoas tão altruístas que baseiam a sua existência no satisfazer as necessidades dos clientes, dos consumidores, sim, somos nós esses, mais do que pessoas, o paradigma do século vinte e um é que somos clientes e consumidores, números num balancete comercial, pessoas é só às vezes, cidadão é termo que não interessa, não interessa a ninguém, claro que não, não é uma necessidade dos clientes consumidores essa estranha coisa de se querer ser cidadão. E tanto mais estranhos são estes tempos em que vivemos que são uns poucos, uns quantos, um número mínimo de pessoas que andam a dizer aos outros, a todos, à maioria, quais são as coisas de que precisam, é assim mesmo, alguns idealizam, uns poucos constróem e uns quantos marquetizam, criam necessidades e dizem-nos a todos como devemos ser felizes. Estranho mundo este onde uns poucos nos dizem o que necessitamos. Talvez fizesse mais sentido ao contrário, talvez o mundo se devesse virar de pernas para o ar, e os rios nasciam no mar, indiferente, o que quer que seja, talvez devêssemos nós achar que somos todos inteligentes e capazes de saber quais são as nossas próprias necessidades, talvez os marquetistas devessem andar a falar com as pessoas e a ouvir aquilo que lhes faz falta, talvez devessem andar esses marquetistas a tentar convencer os poucos que constróem sobre aquilo que os muitos querem, em vez de andar a convencer os muitos sobre o que os poucos querem construir. Mas enfim, são estes mundos ideais coisas da imaginação e do devaneio, não é assim que as coisas funcionam nem poderiam funcionar, claro que não, onde estávamos nós com a cabeça. Ficam os sonhos para o mundo dos sonhos, voltemos nós aos nossos pesadelos, talvez seja isso mesmo, talvez o nosso maior pesadelo seja esse de nem sequer sabermos que necessidades temos. E logo vêm os vendedores de sonhos. Logo vêm eles com um sorriso na cara mostrarmo-nos como é tão fácil sermos mais felizes se tivermos aquela nova coisa inventada pelos melhores e maiores especialistas que nos vai satisfazer aquela necessidade que nós não sabíamos que tínhamos. Como era possível viver sem tal coisa, perguntamo-nos nós, estamos aqui para o servir, diz o vendedor de sonhos, não se preocupe, é só assinar aqui, passar aqui o cartão, endossar aqui o cheque, pode ser a débito, crédito, prestações, endivide-se, gaste, faça como quiser, não se preocupe com mais nada, agora goze o produto e seja feliz. E depois a novidade passa, a felicidade não apareceu, afinal tenho todos aqueles problemas para resolver, o miúdo que não estuda, o dinheiro que faz falta, o Amor, a Confiança que não existem, pois é, maleitas do espírito, para essas os vendedores de sonhos não têm solução, talvez seja precisamente por isso que a felicidade tarda em aparecer, talvez esta se faça com as coisas do espírito e do coração, coisas de difícil e árduo caminho, e não tanto com as coisas que com uma assinatuira e um cheque passamos a ter. Talvez a felicidade se faça mais de ser e menos de ter. Mas isso os marketistas não dizem. Não podem. Porque coisas do ser não se vendem. Enfim. Ficam as dores de quem escreve, os lamentos de quem vê, tantos e tantos e tantos a comprarem tanto e tanto e tanto e depois, falta qualquer coisa, pois, é isso, falta qualquer coisa e lá vão eles comprar mais tantos e tantos e tantos, esquecendo-se que se não foi à primeira que resultou porque diabo haveria de resultar agora. E é assim. É mesmo de vendedores de sonhos que se fazem os dias da nossa infelicidade."

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

"A MEDIDA DOS SONHOS" CHEGA À IMPRENSA!

"Grande acontecimento! Leiam tudo!", grita o ardina em plenos pulmões, "A Medida dos Sonhos chega à imprensa", continua ele a gritar à medida que percorria o macadame armadilhado pela geada matutina que envolvia aquela Lisboa de Outono, em particular a bonita e mui movimentada Rua Augusta. Outros tempos talvez.
O homem estranhou. A Medida dos Sonhos? Que raio seria isso? Aproximou-se, curioso, do ardina que continuava, do auge dos seus doze ou treze anos, a gritar, a voz a ele não lhe doía, coisa incrível, quanto mais se sofre pelo trabalho mais força parece que se tem.
"Ouve lá ò miúdo", interpelou o homem, "Que coisa é essa da medida dos sonhos?"- O miúdo, interrompido, rapidamente esclarece em tom sabido, puto de doze anos mas sabia mais naquele momento do que aquele homem, talvez universitério, talvez doutorado, sabe-se lá, doutor seria de certeza porque tinha um belo chapéu e uma corrente de prata fantástica para o seu relógio de bolso. Mas diziamos nós, o puto rapidamente esclarece "A Medida dos Sonhos? Não sabe? É o livro do Nuno Lebreiro. È muito bom. E hoje, aparece uma mui elogiosa referência no jornal Correio da Manhã"
"Ah é?", estranhou-se o homem.
"É, é"
"Quero comprar então..."
Claro. Quem é que não compraria tal coisa? Pensando bem todos aqueles que pudessem ler de BORLA neste magnífico blog...

Aqui fica.


in Correio da Manhã de 25 de Outubro de 2007


OPINIÃO DE PAULA TEIXEIRA DA CRUZ

"Da vida real
A grande farsa

A Democracia não vive sem a participação dos cidadãos e a transparência de actuação das instituições, sejam públicas ou privadas. É por isso que o afastamento dos cidadãos – por demissão ou inibição de intervenção – e fenómenos de perversão das instituições, como a corrupção, o tráfico de influências, o favorecimento, a fragilização sistemática das instituições ou a ‘marketização’ da política, criam um regime que da natureza democrática só guarda o nome e as comemorações.

Vem isto a propósitos vários. Comecemos pelo chamado Tratado de Lisboa, o novo nome que a Constituição Europeia adoptou, quem sabe se para melhor esconder a sua identidade. É sabido que o cidadão comum se interroga para que serve hoje a Europa: dela conhece vagamente a existência de fundos comunitários (e nem sempre pelas melhores razões) ou a hiperburocracia que a caracteriza. Sentindo-se da União Europeia tão longe como de Marte, o Cidadão comum retribui, ora com indiferença ora com desconfiança, a distância a que a União Europeia se votou. É pena: a Europa Comunitária da Cidadania pode (podia) ter um papel essencial no Mundo, quer na vertente política quer na vertente económica e seria até desejável que assim fosse, bem estribada na defesa dos direitos fundamentais (cuja defesa no novo Tratado também ficou pelo meio).

Subtrair ao escrutínio dos cidadãos projectos políticos fundamentais, ainda para mais quando se trata de projectos que foram inicialmente recusados em vários países, soa a truque, a deslegitimação e a menosprezo pela Cidadania: condena-os ao fracasso.

Em Portugal, PS e PSD prometeram um referendo sobre o projecto Europeu e o pior que podem fazer é faltar ao prometido, tanto mais que a transmutação de Constituição Europeia em Tratado de Lisboa não lhe alterou o conteúdo essencial e é por isso urgente respeitar a promessa feita de consulta às populações.

É bom não perder de vista que quando a voz da rua se vê obrigada a olhar as questões políticas com um ‘isso é lá coisa deles’, o divórcio está à vista e a farsa também. A grande farsa. Ninguém gosta de se sentir enganado.

Por falar em engano(s), em duas semanas o PSD alterou o discurso em questões estruturais (referendo, não à regionalização, impostos ); a liderança tornou-se bicéfala, deu-se início a protectorados dos que são próximos e assistiu-se à entrega de um discurso político e de uma agenda partidária a uma agência de comunicação. Soa a espectáculo e a farsa. A grande farsa. Com coisas sérias.

Felizmente a despropósito, veio-me à memória a ‘Medida dos Sonhos’, um inédito de Nuno Lebreiro – um nome a reter – que merece publicação: “Portanto ”, começou outra vez o António após um ou dois minutos. “ a maior riqueza dos homens é poder pensar Estou de acordo. É a única coisa que permite todas as outras”, concluiu."

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

SINOPSE "A MEDIDA DOS SONHOS"

Ocorreu-me que depois de dois excertos do livro, colocar a sinopse não seria má ideia...


SINOPSE
“A MEDIDA DOS SONHOS”

Engolido por um emprego que despreza, mergulhado numa vida rotineira, submerso num quotidiano desmotivante e encurralado numa Caverna, assim nos é apresentado o artista intelectual António. O António pensador, ou sonhador, como alguns poderão entender, é acompanhado na sua viagem por um narrador metediço e atrevido, que poderia ser a consciência de cada um de nós, o espelho secreto que nos lê a alma e a expõe ao mundo, sem pudor nem escrúpulos, ignorando regras sociais e pensamentos politicamente correctos.
António decide quebrar os Grilhos do “actualmente” e cortar relações com as expectativas criadas para qualquer homem do seu século, enquanto o narrador, ao seu estilo alcoviteiro, carrega o leitor por caminhos não antes trilhados, dando-lhe conta do passado de António, um passado comovente, emocionante e com a aventura esperada de um homem com ideias irreverentes.
Um revelador diálogo com uma personagem ininteligível e a Dialéctica estabelecida com uma mulher, levam António a descobrir e, posteriormente, a revelar profundas ideias sobre o caminho da Humanidade, a compreensão do pensamento, do Universo e um conceito finalístico, orientado para a felicidade da vida.

sábado, 6 de outubro de 2007

ORA TOMEM LÁ MAIS UM

Aqui fica o excerto número dois do primeiro livro, nada de especial, devaneios literários que não desvendam a estória, escreve-se história mas a maneira antiga é melhor...


"Às vezes o ser humano é assaltado por estranhas sensações. É surpreendido. O António podia jurar com elevada certeza e convicção que estava ali sozinho. No entanto, repentinamente foi assolado por uma espécie de grito, um irra ou um merda, não percebeu bem, o que percebeu foi que estava ali alguém. Erguendo-se e virando-se para trás, para o lado esquerdo de quem desce, viu um homem, alto e robusto, vestido de xadrez e com uma boina, que lutava com o mar através da sua comprida cana de pesca. Duelo interessante, ficou a observar o esforço do pescador, muito labutava ele, fazia força e dava à manivela, aquilo era um peixe grande de certeza. A peleja durou ainda um ou dois minutos, foi brava mas o homem saiu vitorioso, sendo com elevado interesse pela dimensão do peixe que o António observou o triste pescado
não era assim tão grande
a ser arrastado para fora de água. Enquanto o pescador tirava o anzol ao infortunado bicho, reparou o António que não tinha o homem nenhum recipiente para o guardar. Estranhou o facto, talvez fosse tão mau pescador que não estava à espera de ser bem sucedido. Foi com ainda maior surpresa que o António viu o pescador a segurar no estrebuchante peixe, deixar cair a cana de pesca e, depois, com as duas mãos, atirá-lo novamente para o mar. Coisa extraordinária, estava explicada a ausência de recipiente, estava também adensado o mistério da personagem. O que o António gostaria de saber era o que levava um homem a chatear os peixes, o termo é esse, o peixe deve ter apanhado o susto da vida dele, há de ir lá para baixo para o pé da mãe peixe, do pai peixe e dos irmãos peixe a gritar, cuidado, apoquentem-se bem, arrancaram-me daqui para um sítio estranho, lá não se consegue respirar e um gajo grande qualquer com a cabeça encarnada olhou para mim, bem nos olhos, e riu-se e deitou-me para aqui outra vez, foi muito estranho, o maior susto da minha vida, para aquelas bandas não volto eu, aquilo é sítio de tormentos e de coisas estranhas. Talvez respondesse o pai peixe, estamos a supor que o apanhado era de idade reduzida, enfim, a verdade é que era pequeno. Mas dizíamos nós que talvez o pai peixe respondesse para o filho, pois, pois, desse sítio onde se não respira já ouvi falar, é lá em cima, chama-se Inferno, não há nada com que se viva, e tiveste tu muita sorte porque as bestas que por lá andam normalmente deixam-nos morrer asfixiados para depois nos esventrarem, cortarem em postas e comerem. Talvez o filho, de olhos bem abertos como é costume de peixe, perguntasse, mas então, que coisa é essa do Inferno, como sabes tu dessas coisas de religião, ao que o pai peixe, talvez a mãe, sabemos lá nós, talvez ele ou ela lhe respondesse, ó peixito, filho querido, nós já cá andamos há muito tempo, o Inferno é facto certo, corre de boca em boca desde tempos imemoriais, há muito tempo atrás, ouve um peixe como nós que foi lá, depois meteram-no num sítio onde se podia respirar, chama-se Purgatório, aquilo tinha vidros à volta e ele viu tudo, viu todas as atrocidades que aquela gente nos faz, e sortudo, conseguiu voltar, como fez ele tamanho feito ele já não disse, ou melhor, ele até disse mas essa lição eu não aprendi, enfim, o certo é que lá para cima para o Inferno tu não queres ir, só se fores mau, o bom é viveres aqui bem a tua vida, um dia hás de morrer e aí vens ter comigo e com a mãe, que nessa altura também já havemos de ter morrido, lá abaixo ao paraíso, e aí seremos felizes para sempre, não te esqueças da lição que hoje aprendeste, com a tua experiência provaste que o Inferno existe mesmo, o teu conhecimento tem de guiar-nos a todos, tens de salvar os teus irmãos de irem parar ao Inferno, o melhor é anunciares o teu saber a todos. Seria essa a altura em que o quase pescado peixe, pouco certo de tanta convicção paternal, perguntaria, mas como posso fazer isso, eu não sou mais que um simples robalo, que posso eu fazer para salvar a peixandade? Ó meu filho, responderia a mãe peixe, tu podes não ser um peixe-boi porque nada tens de manatim ou lamatim, poderás também não ser um peixe-espada porque nada tens de espada ou espadeirada, também não és de certeza um peixe-martelo porque não tens um martelo nem és cornudo, peixe-rei não és porque aterina, piarda ou pica são nomes que não te ficam bem, também peixe-serra não vejo em ti porque de espadarte ou raposo não tens nada, peixe-voador muito menos, não tens asas nem te chamas cóio, agora meu robalito pequenino, hás de ser tu o maior de todos os peixes, o peixe-messias serás tu, és aquele que hás de acabar com o Reino dos Infernos e trazer a paz a todos nós. Coisa incrível, pensaria o peixito, que grande missão, o melhor seria mesmo fundar uma igreja, igreja de peixes, ele seria o orador, um bom orador, até lhe poderiam chamar de padre, já pensava o peixe nisto tudo, era curioso como os peixes não são assim tão diferentes dos homens, a única coisa de que o grande peixe-messias não se lembrou foi de dizer que praticaria o celibato, é normal, afinal qual é o peixe que posto neste mundo para se reproduzir e trazer mais peixes à vida se lembraria de abdicar de tão importante tarefa, celibato não, se ele estava ali para salvar a peixandade, o primeiro passo era certificar-se de que por ele ela não acabava, não senhor, no que dependesse dele haveria peixes para lavar e durar."

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

MAIS UM EXCERTO, MAIS UMA VOLTA

Aqui fica um excerto do meu segundo livro, um pequenino, para a frente haverá mais, já que o primeiro tarda em ser publicado o melhor é ir-me entretendo...


"E ele agiria com desprezo por todos os outros. Agiria com indiferença, faria mais e pior do que lhe haviam feito a si, seria implacável. Quando algum dos seus colegas, necessitado de ajuda pela razão directa do seu próprio e inevitável fracasso, ele, por detrás da sua enorme secretária no último andar de um prédio distinto da capital, nesse momento, ele colocaria os pés em cima da secretária, mãos atrás da cabeça e riria, riria com eco, toda a gente ouviria o seu riso, o seu riso maquiavélico de escárnio perante o fracasso. Ele, bem sucedido
só assim se imaginava
desprezaria aqueles que falhariam. Haveria um dia em que aqueles que agora o desprezavam haveriam de o invejar tremendamente. Ele, nesse momento, seria dono do mundo, seria alvo de todas as invejas e senhor de todo o desprezo. Não haveria mais desprezo e indiferença no mundo porque toda essa energia destruidora se concentraria na frieza gélida do seu olhar. A sua vingança seria terrível. Seria avassaladora. Ele seria o vencedor. Ele teria a palavra final. Ele seria o último a rir.
Perante estes pensamentos o Zé sorriu. Quase sentia o sabor da vitória. Pena que faltasse tanto tempo ainda para a saborear. São pensamentos tristes os que aqui se retractam mas é assim o mundo dos humanos: pleno de inveja e vingança. Aliás são mesmo esses grande parte dos motores do progresso do homo sapiens. O facto de cada um de nós simplesmente nunca estar satisfeito com aquilo que tem e desejar sempre mais. E é aí que se dividem os homens. Aí se separam os justos dos injustos. Os justos, insatisfeitos com o que têm, criam coisas novas, imaginam, ligam a máquina infernal que é o cérebro e descobrem, inventam, deslindam e engenham, através do talento transformam o mundo num sítio diferente. Esses são os génios e os artistas. Esses são a vanguarda de um tempo novo. Já os injustos funcionam de forma diferente. Esses, insatisfeitos também, engenhosos também, cheios de talentos mas sem a centelha divina do génio, esses padecem do grande e tormentoso mal que é a falta de imaginação. Assim, cobiçam, invejam e desejam para si apenas aquilo que conseguem ver, apenas aquilo que vêem outros ter mas que eles não têm. Não trazem nada de novo ao mundo a não ser o contínuo e inesgotável talento dos homens para se detestarem a si próprios, de se verem como indivíduos independentes que pura e simplesmente não percebem que o simples acumular do material apesar de muita riqueza oferecer ao indivíduo não lhe saciará a vontade e que riqueza nenhuma acrescentará ao Homem. Assim é a vida.
(...)
Mas também se há uma coisa que nós aprendemos ao olhar para o mundo dos homens é que a História se fez de vinganças, de guerras motivadas por todos os sete e muitos outros pecados, de sangue, de sangue que eternamente ecoará pelas mentes dos culpados e dos inocentes, tristes fados, triste fardo tão pesado de culpa para a Humanidade carregar. Assim foi, assim é e, infelizmente, assim será por muitos e bons anos. Grande mal não faria se os culpados se matassem apenas uns aos outros, seria a Ganância a sua última companheira, o seu último orgasmo, mas infelizmente todos sabemos que não é assim, quando os culpados, injustos sedentos de invejoso poder, quando os pérfidos se gladiam, entre eles poucos morrem,
triste sina
é apenas uma batalha de uma imemorável e inesgotável guerra, para a próxima há mais, pois é, esses safam-se sempre, quem morre são os inocentes, assim foi desde o início de todos os tempos, até Deus mandou os homens matarem inocentes e virginais cordeiros para que Ele pudesse beber o seu sangue. E se Deus o faz, porque não há-de o Homem, feito à sua imagem fazer também. Do pó vieram os homens, a ele regressarão, não sem antes o encharcarem com o seu próprio sangue. Pois. Crescei e multiplicai-vos, crescei e matai-vos uns aos outros, construí e destruí, disseminai o Meu amor e a Minha fúria"

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

O REGRESSO

Caros amigos e amigas, ou seguindo os princípios da boa educação, caras amigas e amigos,

Venho-vos dar uma explicação para tão súbito desaparecimento de novos textos aqui no blog, explicação essa que consiste no facto de toda a minha capacidade criativa estar concentrada num romance que conto terminar em breve. Assim
para aguçar curiosidades
aqui vos deixo um pequeno excerto do dito livro que, situado mais ou menos a meio da narrativa, nada revela sobre a estória... Espero que seja sinceramente do vosso agrado e que abra o apetite para o que há de vir.... Comentem!
Cumprimentos literários e até breve...


"(..........) E isto é mesmo pertinente. O António está de tal modo abalado que nem as coisas que mais mexiam com ele parecem ter agora qualquer espécie de significado. Parecem ser indiferentes. E não há nada pior do que a indiferença. Não há mesmo. A indiferença é o fim do gosto, da paixão, do querer e da vontade. A indiferença é dizer que qualquer coisa é igual a qualquer outra coisa. Que tudo vale o mesmo. Que um Picasso não vale mais do que os rabiscos do [XXXXX] naquele papel. É matar a arte com um leve e displicente encolher de ombros. É matar o espírito e a alma do artista. No fim é isto mesmo. A musa do nosso artista sem arte calou-se. O seu espírito rebelde sem uma causa evidente silenciou-se. A sua vontade eclipsou-se. O António arrastava-se. Sem reclamar, caminhava sem saber para onde.
(...)
Não será, por esta razão, impertinente recordar-nos a nós próprios e a todos os que acompanham esta aventura que nem sempre a arte de relatar com fidelidade e exactidão os acontecimentos da vida do nosso António atinge os parâmetros de excelência que nós mesmos nos propusemos a alcançar. Isto de ler mentes e arquivos de memória é complicado e, apesar de parecer apetecível para espíritos mais coscuvilheiros, não se recomenda a ninguém. No entanto, mesmo perante todas estas inigualáveis dificuldades, assumimos
com humildade
que cá vamos tentando cumprir com os ditos e referidos parâmetros de qualidade. Assumem-se estas dificuldades porque descrever o estado de espírito do António neste momento preciso no tempo será uma tarefa de elevada dificuldade. Elevadíssima. De nível máximo. O Kilimanjaro das descrições literárias. E se a este desafio não nos furtamos, também não abdicamos de uma profunda e profícua inspiração seguida de uma exalação prolongada, pausada e relaxante para dar alento e calma para tamanha empreitada. Tal como um alpinista antes de deixar para trás os sherpas e começar a sua caminhada. E é isso que este impertinente desabafo é. Aquele pequeno momento em que o difícil ainda não é difícil mas já se sabe que o vai ser muito em breve e durante muito tempo.
Deixemo-nos de rodeios. Que a nossa musa não se cale e nos leve exactamente até onde nós queremos ir. Se para esta narração narrar o espírito do António é subir um Kilimanjaro, para o António o seu espírito está no extremo oposto. Se para se atingir um objectivo sentimos que temos de escalar e quando nos realizamos com o nosso próprio sucesso estamos no topo do mundo, já quando nos sentimos mal dizemos precisamente que nos sentimos em baixo. Ora em baixo quer dizer mais abaixo do que normalmente estamos. Se calhar para o tal sherpa significa estar a mil ou dois mil metros de altitude. Já para um habitante da Serra da Estrela ou do ditoso Pico açoriano seria estar mais ou menos ao nível do mar. Agora para o António que vive ao pé da praia, estar em baixo só pode mesmo significar estar debaixo de água. Ou debaixo de terra. Mas porque estar debaixo de água é bem mais fácil do que estar debaixo de terra até porque para este segundo caso seriam necessários instrumentos que não estão propriamente à mão, tais como pás e enxadas, vamos assumir esta pequena metáfora como uma metáfora aquática até porque se isto alguma vez der em filme será muito mais engraçado e apelativo uma imagem do nosso António a afundar-se calmamente nas águas límpidas e transparentes do nosso bonito mar, rodeado de pequenos e coloridos peixes, do que enfiá-lo a custo pela toca de algum coelho, imagem atrofiante e claustrofóbica esta que, com toda a certeza, muitos espectadores faria fugir da sala de cinema. Assim, o nosso António afundava-se rapidamente nas águas revoltas, negras e tenebrosas
isto de água transparente e peixes coloridos era mesmo só adaptação cinematográfica
sem conseguir parar. Foi mesmo atracar no sítio mais fundo que o espírito humano consegue encontrar. Referimo-nos, como evidente certamente será, à mui conhecida e badalada Fossa das Marianas. E não nos reportamos ao pouco recomendável bairro de barracas dos arredores de Lisboa mas sim aos onze mil metros de profundidade que o Oceano Pacífico atinge ali para os lados das Filipinas. Em suma, o António está mesmo lá em baixo. Onde os peixes nem sequer têm olhos porque tão escuro ali faz que olhos será precisamente a última coisa de que um peixe precisaria. Tão em baixo que a pressão da água reduz imponentes e resistentes construções de aço, ferro e silício ou tungsténio à finura da palma de uma mão. Tão, tão, tão lá em baixo que só para lá se estar quase que se tem deixar de ser. Aliás. Sejamos claros, honestos e concisos. É por tudo isto que alguém, que não o António mas que em condições similares certamente se encontrava, um dia exclamou “estou na fossa”. Pois. Essa tal fossa que existe dentro de todos nós e que não poucas vezes visitamos tem muitos metros de profundidade. Saber quantos metros já depende de que fossa gostamos nós de visitar e de que espécie de mergulhador somos nós. No fundo, isto de estar em baixo ou estar na fossa depende mesmo é de mergulhador para mergulhador. Agora o nosso António é um mergulhador de águas profundas. É um verdadeiro escafandrista. Um alpinista marítimo. E se o António está na fossa, então a fossa só poderá mesmo ser a Fossa. Aquela que é a maior de todas. A Tal. A já referida e temida Mariana. A última morada da crosta terrestre antes de se entrar no acolhedor manto de lava que enleva e embala cuidadosamente o núcleo de ferro líquido do nosso planeta, palavras queridas estas para actividades planetárias mas que para um simples humano, por melhor mergulhador que seja, de acolhedor significam muito pouco, talvez signifiquem mais qualquer coisa parecida com Inferno, Casa de Hades ou mesmo Morada do Lucifer. Quando se está no fundo da fossa, no caso do António será mais correcto dizer
melhor ainda escrever
no fundo da Fossa com F grande, quando se chega aí, o Diabo está ao virar da esquina. O Purgatório ficou lá atrás e são centímetros que nos separam do Grande Cornudo. Isto de dizer centímetros é mais uma arma literária dirão alguns e, admitamos, não passa mesmo de semântica porque é facto cientificamente provado que a crosta terrestre tem uns largos vinte e quatro quilómetros de espessura. Não nos apelidem é de mentirosos porque mesmo sabendo que são vinte e quatro os quilómetros que separam o espírito do António da Besta de Fogo, não deixa de ser verdade que são dois milhões e quatrocentos mil centímetros que compõem essa mesma distância e que isto do quilómetro ser a base de referência é tão válido como ser o centímetro porque como todos sabemos a unidade até é aquilo que está no meio, ou seja, o metro. E também em metros não somos forçados a medir porque isto das medidas foi alguém que as inventou e que se saiba falar em centímetros em vez de quilómetros ou metros, ao contrário de tomar banho na praia com a bandeira vermelha, ainda não paga multa. O ponto é que quando se está no fundo da Fossa, como o António está agora, a distância que nos separa do Sítio dos Grandes Tormentos é mesmo muito pequena. Aliás, estar ali já é por si próprio um grande tormento o que nos leva directamente à possibilidade de, quem sabe, o Inferno ser mesmo um sítio onde o fogo que lavra é precisamente o fogo da nossa mente sob o jugo da pressão da água ou da escuridão da noite, aquela escuridão tão forte que até rouba os olhos aos peixes. Quem sabe mesmo se o ponto onde o atormentado espírito do António viaja não é mesmo o Lago Negro de Belzebu e se assim for a mentira do relato não é tanto em dizer que falta pouco quando a essa escala ainda muito falta, mas será mesmo dizer que ainda falta alguma coisa quando afinal de contas, para mal dos nossos pecados, para se chegar ao Inferno já não falta nada pela simples razão de que já se lá está.
Enfim. Triste sina esta a do narrador que perante a dificuldade de relatar aquilo que vê se enrola em infindáveis e intermináveis metáforas que ganham vida e que nem Frankenstein, acabam por controlar, asfixiar e até matar o próprio relato, pior ainda, perante tamanha tragédia, quiçá o próprio narrador ou narradores perecerão sob o peso bruto e insuportável do seu próprio falhanço porque toda a gente sabe que um relato não se escreve sozinho e que se sai asneira a culpa não é do autoclismo do vizinho ou dos saltos do puto do quinto andar mas é mesmo de quem escreveu o dito relato porque só se relata aquilo que se vê e aquilo que se vê não é mais do que uma opinião de quem escreve sobre o que aconteceu. Dizermos que um relato falhou é dizermos que o relator de escritor não tem nada, aliás de observador terá ainda menos, que isto de escrever ou relatar é mesmo só e nada mais do que a capacidade de observar. Ora atirarmos aos ditos relatores que não conseguem observar é a mesmíssima coisa que os chamarmos de cegos, o que como já perceberam é exactamente igual a mandarmos a dita amostra de escritor para o fundo das Marianas, o tal sítio onde nem os peixes vêem, ou seja, a última casa de todos aqueles que podendo ter olhado não viram e que podendo ter escrito não relataram. Enfim, o cúmulo é mesmo tendo percebido que as metáforas acerca do António eram já exageradas e ter, ainda por cima e por baixo, começado a metaforiar sobre o facto de previamente ter metaforiado sobre o António. É que se se entra nesta espiral esquizofrénica da metáfora, essa droga literária capaz dos maiores vícios
lá vamos nós outra vez
está mesmo o relato arrumado e o bilhete de submarino para a Fossa das Marianas adquirido. Enfim, tentando ainda
humildementesalvar o que pode ser salvo, com os mais e maiores sinceros obséquios, nos desculpamos de tamanho devaneio que é como quem diz um devaneio de tão grande envergadura, não se medindo esta em centímetros porque de coisas da mente não tratam os centímetros, nem os metros ou, já agora, os quilómetros, admita-se no entanto que no mundo dos devaneios, este último foi certamente rei e o melhor é mesmo voltar ao António porque se isto dos devaneios terem reis não é a bela da viciante e insidiosa metáfora outra vez então não sabemos nós o que raio será. Agora é que estes meteram a pata na poça, estarão certamente a pensar alguns dos nossos leitores porque toda a gente sabe, continuarão eles, que isto dos devaneios terem reis é uma evidente e indiscutível personificação. Seria esse o saboroso momento em que colocadas em cheque as nossas capacidades de análise gramatical, nos riríamos com gosto, deixando puxar o riso bem do fundo do poço das cordas vocais e, já agora dando-lhe um muito a propósito eco de igreja medieval, riso demoníaco este de que falamos agora, porque estará na altura de relembrar que na grande disputa filosófica do que é uma metáfora e do que não é, nós somos partidários da corrente metaforista, ou seja, daqueles que defendem que tudo são metáforas e que o resto é história, ou melhor, estória porque mesmo que tenham retirado esta palavra do nosso léxico, é de estórias e não de História que aqui tratamos. Mas enfim. Já fomos mesmo longe demais, o devaneio já deu toda a luta que tinha para dar e está mesmo na hora de voltarmos àquilo que interessa que é como quem diz ao nosso fiel relato sobre as aventuras e desventuras do nosso amigo António (..........)".

domingo, 3 de julho de 2005

Será o regresso?
Será o início?
Será o fim do início ou simplesmente não será nada? Ou antes é que não era nada?
E agora?
Já é?
É. E será novamente.