Aqui fica o excerto número dois do primeiro livro, nada de especial, devaneios literários que não desvendam a estória, escreve-se história mas a maneira antiga é melhor...
"Às vezes o ser humano é assaltado por estranhas sensações. É surpreendido. O António podia jurar com elevada certeza e convicção que estava ali sozinho. No entanto, repentinamente foi assolado por uma espécie de grito, um irra ou um merda, não percebeu bem, o que percebeu foi que estava ali alguém. Erguendo-se e virando-se para trás, para o lado esquerdo de quem desce, viu um homem, alto e robusto, vestido de xadrez e com uma boina, que lutava com o mar através da sua comprida cana de pesca. Duelo interessante, ficou a observar o esforço do pescador, muito labutava ele, fazia força e dava à manivela, aquilo era um peixe grande de certeza. A peleja durou ainda um ou dois minutos, foi brava mas o homem saiu vitorioso, sendo com elevado interesse pela dimensão do peixe que o António observou o triste pescado
não era assim tão grande
a ser arrastado para fora de água. Enquanto o pescador tirava o anzol ao infortunado bicho, reparou o António que não tinha o homem nenhum recipiente para o guardar. Estranhou o facto, talvez fosse tão mau pescador que não estava à espera de ser bem sucedido. Foi com ainda maior surpresa que o António viu o pescador a segurar no estrebuchante peixe, deixar cair a cana de pesca e, depois, com as duas mãos, atirá-lo novamente para o mar. Coisa extraordinária, estava explicada a ausência de recipiente, estava também adensado o mistério da personagem. O que o António gostaria de saber era o que levava um homem a chatear os peixes, o termo é esse, o peixe deve ter apanhado o susto da vida dele, há de ir lá para baixo para o pé da mãe peixe, do pai peixe e dos irmãos peixe a gritar, cuidado, apoquentem-se bem, arrancaram-me daqui para um sítio estranho, lá não se consegue respirar e um gajo grande qualquer com a cabeça encarnada olhou para mim, bem nos olhos, e riu-se e deitou-me para aqui outra vez, foi muito estranho, o maior susto da minha vida, para aquelas bandas não volto eu, aquilo é sítio de tormentos e de coisas estranhas. Talvez respondesse o pai peixe, estamos a supor que o apanhado era de idade reduzida, enfim, a verdade é que era pequeno. Mas dizíamos nós que talvez o pai peixe respondesse para o filho, pois, pois, desse sítio onde se não respira já ouvi falar, é lá em cima, chama-se Inferno, não há nada com que se viva, e tiveste tu muita sorte porque as bestas que por lá andam normalmente deixam-nos morrer asfixiados para depois nos esventrarem, cortarem em postas e comerem. Talvez o filho, de olhos bem abertos como é costume de peixe, perguntasse, mas então, que coisa é essa do Inferno, como sabes tu dessas coisas de religião, ao que o pai peixe, talvez a mãe, sabemos lá nós, talvez ele ou ela lhe respondesse, ó peixito, filho querido, nós já cá andamos há muito tempo, o Inferno é facto certo, corre de boca em boca desde tempos imemoriais, há muito tempo atrás, ouve um peixe como nós que foi lá, depois meteram-no num sítio onde se podia respirar, chama-se Purgatório, aquilo tinha vidros à volta e ele viu tudo, viu todas as atrocidades que aquela gente nos faz, e sortudo, conseguiu voltar, como fez ele tamanho feito ele já não disse, ou melhor, ele até disse mas essa lição eu não aprendi, enfim, o certo é que lá para cima para o Inferno tu não queres ir, só se fores mau, o bom é viveres aqui bem a tua vida, um dia hás de morrer e aí vens ter comigo e com a mãe, que nessa altura também já havemos de ter morrido, lá abaixo ao paraíso, e aí seremos felizes para sempre, não te esqueças da lição que hoje aprendeste, com a tua experiência provaste que o Inferno existe mesmo, o teu conhecimento tem de guiar-nos a todos, tens de salvar os teus irmãos de irem parar ao Inferno, o melhor é anunciares o teu saber a todos. Seria essa a altura em que o quase pescado peixe, pouco certo de tanta convicção paternal, perguntaria, mas como posso fazer isso, eu não sou mais que um simples robalo, que posso eu fazer para salvar a peixandade? Ó meu filho, responderia a mãe peixe, tu podes não ser um peixe-boi porque nada tens de manatim ou lamatim, poderás também não ser um peixe-espada porque nada tens de espada ou espadeirada, também não és de certeza um peixe-martelo porque não tens um martelo nem és cornudo, peixe-rei não és porque aterina, piarda ou pica são nomes que não te ficam bem, também peixe-serra não vejo em ti porque de espadarte ou raposo não tens nada, peixe-voador muito menos, não tens asas nem te chamas cóio, agora meu robalito pequenino, hás de ser tu o maior de todos os peixes, o peixe-messias serás tu, és aquele que hás de acabar com o Reino dos Infernos e trazer a paz a todos nós. Coisa incrível, pensaria o peixito, que grande missão, o melhor seria mesmo fundar uma igreja, igreja de peixes, ele seria o orador, um bom orador, até lhe poderiam chamar de padre, já pensava o peixe nisto tudo, era curioso como os peixes não são assim tão diferentes dos homens, a única coisa de que o grande peixe-messias não se lembrou foi de dizer que praticaria o celibato, é normal, afinal qual é o peixe que posto neste mundo para se reproduzir e trazer mais peixes à vida se lembraria de abdicar de tão importante tarefa, celibato não, se ele estava ali para salvar a peixandade, o primeiro passo era certificar-se de que por ele ela não acabava, não senhor, no que dependesse dele haveria peixes para lavar e durar."
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