segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

EXCERTINHO

"A morte apresentava-se-lhe como um ser indesejável que entrava sorrateira e silenciosamente pela porta de trás de sua casa, um ser trajado a negro e armado de uma gadanha, um homem
ou talvez uma mulher
sem rosto, que lhe agarrava pelo braço e o puxava, vens comigo, gritaria essa sinistra personagem, não tens safa, vens comigo para onde eu quiser, e o xxxxxx, tal como num profundo e terrífico pesadelo, quer espernear, quer gritar, quer fugir e não consegue, aqueles braços por debaixo do negro manto da Morte não deixam, ele não vai a lado algum a não ser para lado nenhum.
Para os homens o que a morte traz de complicado é o facto de quebrar a normalidade das coisas. Convenhamos que morrer não é normal. E esse é que é o problema. É que se morrêssemos várias vezes, então mesmo que nos assustássemos à primeira ou ainda
para os mais medrosos
à segunda, lá para a quarta ou a quinta vez a morte já não teria nada de novo. Em vez de fugirmos dela como o diabo foge da cruz, até acabaríamos por aceitar o inevitável com calma e serenidade. Eventualmente
para os mais aventureiros
até se armaria, aquele que iria morrer outra vez, em galanteador de canto de escada e convidaria a Morte para um café ou um copo de vinho, afinal personagem tão singular desperta interesse, e o que desperta interesse dá vontade de conhecer, o que convenhamos é complicado de fazer a não ser que se esteja vivo. Então Dona Morte explique lá que estória é essa de ser feita só de osso, não tem pele, como é tal coisa possível, talvez ela respondesse, é lixado pá, é mesmo lixado, no inverno faz frio, sabes que eu trabalho todos os dias, faça chuva ou faça sol, coisa complicada, o reumatismo é uma merda, experimenta lá andar para aí a matar pessoas com os ossos a gemerem ou cheio de bicos de papagaio e logo vês o que é bom para a tosse. E a Morte, de um trago só, beberia o copo três de vinho, licor que escorreria pelos seus ossos pingando que nem manchas de sangue no chão, afinal quem tudo quer nem tudo pode, e nem a Morte, capaz de se vencer a si própria porque é a única coisa que é imortal, nem ela mesma pode tudo, à pois é, reste-nos essa consolação pode a Morte levar-nos a todos mas o sabor de um bom copo de vinho, isso é um segredo que vai connosco para a cova."

Um comentário:

  1. Era o vinho, era o vinho a coisa que eu mais adorava, mas agora gosto mais de visitar o teu blog. Gostei do diálogo com a Dona morte, torna tudo mais simples.
    mãe

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