quarta-feira, 29 de julho de 2009

UM EXCERTO DO SEGUNDO LIVRO (AINDA A MEIO)

"O Zé correu rapidamente em busca daquela bola colorida. Teve como principal problema o facto dela ter resvalado para fora da varanda e, caprichosamente, ter ido anichar-se num tufo de cactos. Ora, isto de as plantas serem muito giras até pode ser verdade mas, também não deixará de ser certamente absolutamente verídico o facto de um aglomerado de cactos, essa planta desconfiada e super protegida, vegetal armado até aos dentes, enfim, não deixará de ser verdade que tal aglomerado de picos selvagens representa um grande problema para um bípede humano de apenas cinco anos. Isto para não falar ainda do maior problema que tais aparelhadas verduras significam para uma pequena bola de plástico, de um frágil objecto falamos agora, uma vulnerável coisa bastante atreita às complicações inerentes à junção da sua ténue camada plastificada que impede o ar nela contido de fugir para a atmosfera, ou seja, uma bola é uma bola porque tem ar e, tal como as pessoas, se o perder a sua existência cessa, acaba-se o jogo e a brincadeira e a pobre bola conhecerá de forma absolutamente infalível o fim último de tudo o que existe e deixa de o fazer, ou seja, é como quem diz, passar a sentir na pele o triste ostracismo dos vivos que
como todos sabemos
não querem coisas mortas ao pé de si, claro que não, uma bola furada vai para o cemitério de todas as bolas, exacto, o caixote do lixo. O que nós não nos poderemos aqui esquecer é que para uma criança de cinco anos, falamos novamente do Zé, a bola é muito mais nova, tem apenas um mês, talvez uma curta idade, não se sabe, isto dos ciclos de vida de uma bola, principalmente das pobrezinhas que nem têm direito a pipo de reenchimento, cabedal e fios de costura, principalmente para essas, se calhar, sabe-se lá, talvez um mês numa vida de bola não seja assim tão pouco. Mas a questão não é essa. É que para o Zé a bola tem mais vida do que um tufo de verduras cheio de picos. A primeira brinca com ele, salta, foge, deixa-se apanhar, interage e permite muita brincadeira. Já os segundos, os tais beligerantes cactos, esses só chateiam, picam e magoam, pior ainda, são causadores de um grande número de baixas na comunidade das bolas. Assim, para o Zé, o que era importante era salvar a sua nova bola preferida de ser terrificamente esventrada às mãos pérfidas, vis e torpes dos famosos cactos assassinos.(...)
E foi sozinho que o temerário petiz se dirigiu para o canteiro por debaixo da varanda onde se via, bem lá ao fundo, um objecto redondo e pintalgado de azul e encarnado. Parando em frente aos cactos, dedicou-se o miúdo a estudar a situação. Procurando o local mais desprovido de picos pensou que conseguiria alcançar a bola, pelo que gatinhando, começou a percorrer o curto mas penoso caminho que o separava do motivo de tanto esforço. Ao começar a penetrar a densa floresta de espinhos, cedo percebeu
a dor aguda causada pelo contacto com dois picos ajudou
que não conseguiria alcançar os seus intentos daquela forma. Lembrou-se, então, de ir buscar uma vassoura para tentar puxar a bola para junto de si. É assim que os humanos fazem, quando Maomé não consegue ir até à montanha, arranja-se tecnologia para fazer que a montanha vá até Maomé. Nem que a tecnologia em causa seja algo de milenar existência, um singelo pau. Foi na busca por uma vassoura, já tinha visto o seu pai fazer isso, que o Zé se dirigiu para a arrecadação, era do outro lado da varanda, do lado de fora da casa. Chegado lá, pegou na vassoura e estava ele pronto para se vir embora quando reparou na existência de um objecto mais comprido que a vassoura. Pois. Se queremos chegar a um sítio difícil, quanto maior for o objecto auxiliar, mais fácil se torna a tarefa. Foi assim que o Zé, armado de uma pesada enxada, arrastou-se até ao canteiro, a esperança invadia-o, estava certo de que conseguiria resolver o imbróglio.
Chegado lá começou o miúdo a empurrar o cabo da enxada para o fim do canteiro, até aí tudo bem, nada de mais, a enxada era pesada mas o pequeno lá conseguiu. A dificuldade residia agora em conseguir levantá-la segurando apenas na extremidade. Desígnio simples para adultos e jovens, nada mais fácil e banal, mas tarefa impossível para aquele muito jovem petiz, não conseguia, bem tentou o pobre coitado mas viu as suas esperanças esvaírem-se num esforço inglório e absolutamente inútil. Enfim. Bufou o miúdo, irritou-se com a situação, porque é que o raio dos picos estão ali, que merda, bolas, fosga-se, porra para isto, o que quiserem, se a fúria de um singelo fluxo de existência humana matasse, aqueles cactos já teriam o enterro encomendado e estariam a esta hora a encontrarem-se com o seu criador, com o seu deus, exageros e devaneios literários, sabemos lá nós quem é que os cactos acham que é deus, mistério insondável, talvez o seu deus seja o homem de boné e enxada que lhes dá água e faz a poda. Já esta irritante criança deverá ser o diabo em pessoa, anda ali a espezinhar as suas raízes, a espetar paus, a incomodar e a prejudicar tão pacatas criaturas, é isso mesmo, os cactos só podem ser apelidados de pacatos porque só fazem mal a quem lhes mexe, e mesmo assim só se lhes mexer com muita força, toda a gente sabe isso, um pico tocado com gentileza não faz mal a ninguém.
Viu-se o Zé forçado a deixar a enxada para trás de si, não tinha utilidade nenhuma, começou a tentar novamente ir ele próprio atrás da bola, aguentou, um, dois e três picos, já sangrava de um braço, corajoso continuou ele, mas chegado a um ponto percebeu que não conseguiria ir mais longe, triste sina a do rapaz, nada a fazer, teve de voltar para trás em marcha atrás, releve-se o pleonasmo, é parecido com o subir para cima, a diferença é que queríamos mesmo referir o facto do miúdo vir em marcha atrás, à ré se preferirem, lá foi ele, andou, andou e saindo por fim do ignóbil canteiro, levantou-se, que desgraça, quando se punha de pé, o seu pé direito apoiou-se na pá da enxada, que coisa desgraçada, já adivinham o que aconteceu, claro, quando fez força para se levantar apoiado em tão perigoso instrumento, a enxada não gostou e ao ser pressionada na parte de baixo, o respectivo pau levantou-se num ápice, é a teoria física das alavancas que tanto jeito deu a tantos humanos durante tanto tempo mas que aplicada aqui apenas resultou no pau a bater na cabeça do Zé, que horror, levou o miúdo uma paulada, os sentidos abandonaram-no e caiu ele desamparado, que terrífico acidente, em cima dos cactos, vá lá os olhos estavam fechados, espetou-se ele por aquele canteiro a dentro, queda por knock out logo ao primeiro round, grande vitória da enxada Tyson, estava o miúdo a dormir e a sangrar por todos os lados deitado naquele canteiro.
Nunca mais o Zé se esqueceu daquele dia, o dia em que abandonado, a tentar salvar uma bola, acabou no hospital a tirar catorze enormes espinhos de cacto da pele e a levar cinco pontos na cabeça. Assim foi, tivesse o pai ou a mãe ajudado e tal coisa nunca teria acontecido, foi nisso que o Zé pensou, nunca esqueceu, foi ali que percebeu que se queria fazer alguma coisa da vida teria de o fazer sozinho."

Nenhum comentário:

Postar um comentário