UMA QUESTÃO DE LIBERDADES
Já pensaram na quantidade de coisas que nós somos e que, muitas vezes, nem sabemos muito bem o que são? Por exemplo, o que é esta coisa, tão apregoada, de sermos livres?
Alguém me sabe explicar, com toda a certeza, precisão e rigor o que é o conceito de liberdade? Em que consiste? Como se manifesta? Como se aplica na prática?
ser livre é a faculdade de uma pessoa poder expressar os seus sentimentos e ideias sem censura
E não me venham com a conversa de que ser livre é a faculdade de uma pessoa poder expressar os seus sentimentos e ideias sem censura porque isso é uma grande tanga. Todos nós, numa ou outra ocasião, já tivemos de esconder os nossos sentimentos ou as nossas ideias. Quem nunca teve de fazer autênticos fretes a aturar conversas indesejadas? Aqueles telefonemas intermináveis? Ou quem nunca teve um professor ou um patrão a quem, por e simplesmente não reconhecíamos a autoridade para nos dar educação ou ordens? Alguma vez nos virámos para essas pessoas e lhes atirámos à cara a verdade daquilo que sentíamos?
Não podíamos. Quer dizer, poder até podíamos mas não o fizemos. É que uma coisa da qual eu posso ter certeza, é que ser livre não é sinónimo de ser idiota.
ser livre é poder fazer da minha vida o que me apetece
Devo vos dizer que a teoria mais ridícula de todas que eu já ouvi é que ser livre é uma pessoa poder fazer da sua vida aquilo que lhe apetece. Ora se isto fosse verdade eu passava as minhas manhãs a navegar na Internet, as tardes no cinema e as noites nos copos com os amigos. Mas não. Ou vão-me dizer que toda a gente vai de sorriso nos lábios para os seus empregos rejubilando de alegria pelo facto de ir contribuir para o produto interno bruto português?
ah, eu adoro o meu trabalho
pois... mas oito horas por dia, cinco dias por semana, com vinte dias de férias por ano, nem que o trabalho fosse escrever textos para os “pensamentos desblogueados”...
mas se eu não trabalhar não tenho dinheiro
Uma coisa eu garanto. Ser livre não é morrer de fome por isso tem de ser outra coisa. Um conceito que me explique porque é que eu sendo livre me tenho de sujeitar a tanta coisa que me desagrada.
ser livre é poder desfrutar dos prazeres da vida
Mentira! Desfrutar dos prazeres da vida dá colesterol, rugas e barriga. Desfrutar dos prazeres da vida é aquilo que se pode fazer mas só um bocadinho. Desfrutar dos prazeres da vida é para quem pode, não é para quem quer.
Pois é. Isto torna-se complicado. Se somos todos livres porque é que temos tantas restrições?
A conclusão é, então, muito simples: Nós não somos livres. Só que não somos livres porque temos a liberdade de escolher não ser livre. A liberdade enquanto conceito é algo de inatingível. É uma ideia, não é uma experiência. Pensa-se mas não se vê. Imagina-se.
A verdade é que o ser humano abdica da liberdade. Abdica porque tem algo em troca. Deixa de ser livre para viver em sociedade porque esta lhe pode dar coisas que ele sozinho não conseguiria obter.
E aqui reside a questão principal. É um contracto. Todo o ser humano à nascença, sem o saber, faz um contracto com a sociedade humana
eu irei cumprir as vossas regras
absorvendo os nossos princípios e as nossas doutrinas dominantes. Nesse ponto nós não somos livres para escolher. Não temos hipótese. Essa hipótese de escolha, fruto da liberdade inerente à razão humana, aparece-nos mais tarde quando já é tarde de mais. Quando a alternativa é demasiado cara para se pagar. É aí que nos tornamos verdadeiramente adultos, no momento em que aceitamos as regras da sociedade, não por que elas nos sejam impostas
filho tens de fazer o que eu te digo
mas porque simplesmente não estamos dispostos a abdicar de certas coisas que entretanto se tornaram absolutamente fundamentais para nós
aquele carro, aquela casa, aquele electrodoméstico
Na verdade fomos comprados, aceitamos certas regras e certas contingências com as quais, se pensarmos minimamente sobre o mundo que nos rodeia, até poderemos eventualmente discordar
aquela televisão, aquela roupa, aquela playstation
porque, afinal de contas, gostamos do conforto e do comodismo que esta sociedade ocidental nos oferece. “Oferece”. Oferece em troca de algo. Não há almoços grátis.
Então já percebi o que é a liberdade. Liberdade é aquilo que eu não tenho para poder viver em sociedade. Nesta sociedade.
mas não há outra sociedade que crie tanto bem estar quanto a nossa
É verdade. Sem dúvida que o modelo social que a sociedade ocidental apresenta é o melhor e o mais evoluído que alguma vez nós conhecemos.
mas não é perfeito
Tem muitas imperfeições. Tem muito para ser melhorado. Tem muito que evoluir.
Não há nada que me irrite mais do que aquelas pessoas que dizem que, como no filme, “melhor é impossível”. Mais do que isto não há.
Que presunção enorme considerar que um grupo de animais que exploram cerca de quinze por cento da sua capacidade cerebral, partilham 98 por cento de genes com um gorila e que andam por aí há uns curtos milhares de anos já alcançaram o melhor modelo social possível. Isso é mesma coisa do que dizer que no espaço não há mais nada para explorar para além da lua...
Na minha opinião há muito para evoluir. Para mim estamos muito mais próximos do início do que do fim.
E era aqui que eu queria chegar. Ser livre, na verdadeira acepção do conceito, é uma impossibilidade. Mas não podemos deixar de tentar analisar o que é a liberdade do indivíduo enquanto ser social. É efectivamente um contracto. Mas é um contracto que não deve ser imutável. Não deve e não pode. Tudo o que é imutável é contrário à noção de evolução.
Qual é então a definição de liberdade, neste sentido mais restrito? O que é a liberdade do ser humano social?
E, como tudo na vida, a resposta que penso que é a mais correcta é aquela que é mais curta e mais simples: Liberdade é igual a responsabilidade.
Este pequeno princípio, que me foi ensinado na escola, resume tudo. Agora a questão realmente é de que forma se aplica este pequeno princípio na prática.
A sociedade não é mais do que o conjunto de todos os indivíduos que nela estão inseridos. Ou seja, a sociedade é aquilo que nós quisermos que ela seja.
eu não posso mudar o mundo
Ninguém pode mudar o mundo sozinho. Sozinho. Mas nós não estamos sozinhos.
A maior responsabilidade que a liberdade nos dá é sermos críticos e lutarmos por uma sociedade melhor e mais justa do que aquela que nós temos. Foi assim que se construiu a evolução do Homem. Se assim não fosse ainda estaríamos a mandar bruxas para a fogueira.
E a responsabilidade da evolução social é nossa porque a liberdade social também o é. Só quem não é livre é que não pode decidir o seu futuro.
E o que me irrita é que nós para além de abdicarmos da liberdade em sentido lato e geral, começamos também a abdicar da liberdade em sentido restrito. Começamos a deixar de lado o nosso espírito crítico. Deixamos de acreditar que temos força. Sujeitamo-nos. Desistimos.
porquê?
Porque estamos acomodados. Porque acreditamos que assim é que as coisas são. Porque não há nada a fazer.
A maior liberdade que nós temos ninguém, em lado nenhum, em tempo algum e em circunstância alguma nos pode tirar: A capacidade de sonhar.
E, meus amigos, hoje, as pessoas estão a deixar de sonhar. Sonham com coisas para si próprias mas esquecem-se de sonhar para o colectivo. Somos individualistas. Ou seja voltámos ao início. Voltámos, tal como quando éramos verdadeiramente livres, a preocuparmo-nos apenas com aquilo que nos interessa enquanto indivíduo. O que significa que, além de abdicarmos ( e bem) da nossa liberdade em sentido lato, abdicámos também, pelo caminho, da nossa capacidade de mudar o colectivo. Estamos, portanto, a abdicar de ter um mundo melhor. Estamos a fugir às nossas responsabilidades. Logo, estamos a abdicar da nossa liberdade em sentido restrito.
O facto de termos de ser educados com as pessoas, de respeitarmos as hierarquias, de assumirmos sacrifícios ou de termos de ter cuidado com a nossa saúde atesta os limites da nossa liberdade. E isso é bom.
O facto de desistirmos de participar na construção de um colectivo melhor, de não nos atrevermos a ir para além do que nos dizem que é possível, de só olharmos para o nosso umbigo atesta o fim da nossa liberdade. E isso é mau.
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