quinta-feira, 9 de outubro de 2003

FOI ESTA A MENSAGEM QUE LHE MANDEI



“ e de repente lembrei-me : o que é feito da rapariga dos meus sonhos? Um grande beijinho para ti...”

Foi esta a mensagem que eu lhe mandei – disse Zeca em voz alta.

Ele estava sozinho em casa, mãe no trabalho, pai no Alentejo

e ela não respondia

Ecoavam pela casa os sons , tristes se sozinho, alegres se acompanhado, de Nat King Cole. Porquê, perguntava-se ele, porque é que ela não reponde? Várias eram as respostas a esta e a outras perguntas. No entanto nenhuma delas o satisfazia. Tinha de haver uma resposta que simultaneamente lhe dissesse que ela, Inês, gostava dele mas que ao mesmo tempo lhe apresentassem uma razão para que o seu telefone não tocasse o som pré-defenido de chegada de mensagem.

Conhecera-a no verão, rapariga altiva e alegre. Companheira de noites divertidas. Juntara-os a mística, própria do verão, as feromonas quentes da juventude que os unia. Ele praticamente a ela se declarara e ela

o meu namorado está em Madrid

não lhe dera hipótese. Todavia, algo de magnético, enigmático, que nem ele nem ela percebiam, talvez algo de poético, lhes dizia que eles deviam estar juntos. Ele acreditou, ela nem por isso. Ele queria mais mas ela não.

o meu namorado está en Madrid

se não fosse o namorado

Que argumento era este, perguntou-se ele mais tarde, que argumento era este que o fazia achar que a instituição do namoro era uma perfeita estupidez

o teu namorado está em Madrid... e depois?!

mas que ao mesmo tempo o fazia pensar

que sorte a dele

eu é que devia ser o teu namorado! E aí já fazia sentido, o namoro, dois humanos unidos pela força do destino. Juntos pelas circunstâncias do verão. Louco verão – pensava ele – Discotecas, noites perdidas, ou ganhas, dependendo da perspectiva, danças, toques, música que soa a violinos mesmo para quem poucas vezes os escutou.

que sorte a dele

E o amor se transforma em ódio – Filho da mãe, com uma miúda destas e vai sozinho para Madrid?

Mas ela foi-se embora. E ele ficou. Sozinho.

O verão continuou, as noites sucederam-se, as bebedeiras, os amigos, as miúdas na praia... Meses passaram

nunca mais a vais ver – disse-lhe o Rui

sem que ele a visse. Pensando bem, ele tinha sido estúpido o suficiente para ter perdido o número de telefone dela

o meu namorado está em Madrid

Ela não queria nada com ele.

Zeca viu os dias passarem e, gradualmente, a foi esquecendo. Volta não volta lembrava-se mas

o meu namorado está em Madrid

E até apareceram novas conquistas mas o seu íntimo sempre lhe dizia que faltava qualquer coisa. – Não tem aquele je ne sais quois, ou então não temos os mesmos interesses. Zeca afundou-se no trabalho e

tão longe que já vai aquele verão

o dia a dia, monótono, recompensador profissionalmente mas vazio das mais profundas emoções, continuava, célere, impiedoso e, sem desculpas, pequenino.

Zeca era um rapaz de vinte e dois anos dedicado às artes. Queria ser actor mas as oportunidades escasseavam. Acima de tudo dedicava-se, porque tinha de viver, a um trabalho de vendedor numa conceituada empresa de telecomunicações. Filho de pais casados, no entanto beligerantes, cedo metera na cabeça que tinha de singrar no mundo por ele próprio. Se o teatro ou cinema dessem alguma coisa tudo bem mas o importante era garantir que tinha alternativas. Andou durante alguns anos na universidade mas era cara e com um horário extenuante não tinha grande motivação. Nunca soube o que queria fazer da vida até perceber que ser actor lhe permitiria ser tudo. Podia ser carpinteiro, astronauta, médico ou, simplesmente, ele próprio. Era, como ele costumava dizer, mais que um dois em um, um infinito em um.

será que tenho jeito?

Mas até tinha. No entanto o emprego não lhe dava tempo e , como tantos outros, Zeca transformou-se numa pequena peça da gigantesca engrenagem da sociedade moderna.

Trabalhava durante a semana, divertia-se ao fim de semana. A vida até não é assim tão má. E a pouco e pouco ele foi crescendo e percebendo que isto de trabalhar, comer, dormir e, já agora que se é jovem, divertir até era um modo de vida. Feliz? Talvez.

Mas chegou aquela noite. Festejava o aniversário com amigos e amigas, uma delas até bastante – talvez de mais – próxima quando a viu

meu Deus!!!

junto a uma coluna da melhor discoteca de Cascais. Loura, olhos castanhos claros, com uma forte inflexão para o esverdeado, esplendorosa com um top e umas calças apertadas. Era ela. Inês.

Conversaram durante mais de uma hora. Lembras-te disto e daquilo, o que fazes agora, etc...

- Então e Madrid? – Perguntou-lhe ele, numa clara alusão ao patife que tinha lá chegado antes dele.

- Ah isso.. ´tou mais numa de independência – respondeu ela com um ar enigmático.

Ele ouviu sinos, catedrais, resmas de sons. E aguentou-se de pé.

- Independência? Temos de combinar ir sair. Talvez um cinema ou até ir ao teatro... – disse ele com um entusiasmo contagiante.

- Claro, vamos combinar – um sorriso grassava naquela cara, clara e bonita.

Naquele momento, Zeca percebeu o porquê daquele misterioso vazio que o acompanhava nos últimos meses.

Passaram-se dois dias e ele telefonou-lhe – agora não tinha cometido o mesmo erro – pensou ele. Mas ela não podia.

Passaram-se mais dois dias e ele voltou-lhe a telefonar. Mas ela estava cansada.

mas que merda é esta?

Dois dias depois – Hoje há um espectáculo de stand up comedy no Bairro Alto – mas ela não quis ir.

- Ora bolas! – disse ele em voz demasiado alta – Será que ...

já não eram sinos que ele ouvia.

Ela tem o meu número.

Passou-se quase uma semana e nada. Ela não lhe ligou e ele poucas ligações telefónicas vendeu.

- O que se passa? – perguntou-lhe Sandro, o seu supervisor.

- ´Tou em baixo de forma – responde-lhe Zeca secamente.

Mas hoje, sozinho em casa, após ter aberto uma garrafa de vinho, Zeca mandou-lhe uma mensagem:

“ e de repente lembrei-me : o que é feito da rapariga dos meus sonhos? Um grande beijinho para ti...”

Mas ela não respondeu. – Ainda – pensou ele – Ainda não respondeu.

A garrafa de vinho acabou – O jantar até estava porreiro – disse ele entre dentes, cada vez mais sonolento. Que se foda a mensagem, eu até nem gosto dela. Vou mas é para a Austrália. Imagens desconexas de australianas de bikini pululavam alegremente, ou tristemente, pela sua mente. – O que não falta por aí são gajas – dissera-lhe uma vez o Rui, enquanto lhe punha a mão no ombro

esse gajo é que tem razão

“ e de repente lembrei-me : o que é feito da rapariga dos meus sonhos? Um grande beijinho para ti...”

Até estava gira a mensagem...- pensou Zeca, enquanto dava um último gole.

Numa espiral de imagens e sentimentos insana que se afunilava cada vez mais no seu íntimo, Zeca, a pouco e pouco adormecia. Mais para lá do que para cá lembrou-se dela. Pelos vistos não queria nada com ele. Porquê? – perguntava-se ele morbidamente. Adormeceu.

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