terça-feira, 24 de janeiro de 2012
A MENINA DA CAPA NEGRA
Talvez para combinar com os seus longos cabelos negros e com os olhos escuros profundos que se entrevêem por debaixo da franja larga, ela veste-se sempre de preto. Com uma espécie de capa larga, onde os braços se confundem com o tronco, assim vai passeando por entre as mesas satisfazendo os pedidos dos lisboetas confortavelmente instalados nas cadeiras daquele salão antigo. Caminha hirta e silenciosa: não percorre o chão de madeira corrida, antes paira suave como uma pena, graciosa e serena, exercendo um domínio tranquilo sobre tudo o que a rodeia. Dou mais um golo na cerveja e, distraído da minha leitura, dou por mim a segui-la com os olhos até ao fundo da sala enquanto carrega, com as duas mãos, um tabuleiro redondo preenchido com uma garrafa de vinho e alguns copos. Chegada à mesa do fundo, calmamente, com a classe que naturalmente emana, pousa o tabuleiro e, pegando no saca-rolhas, principia a desenrolhar a garrafa. Roda para um lado, faz força, volta a rodar mas não é bem sucedida. Tenta de novo e vê-se forçada a mudar de posição. Um assomo de preocupação vislumbro eu na forma como os seus movimentos ganham uma certa rapidez que nela ainda não tinha visto. Deste lado da sala, ao pé das janelas envidraçadas aos quadradinhos, vejo-a, a ela e ao seu vulto negro, de costas para mim, de volta da garrafa maldita. Tenho vontade de levantar-me e ajudá-la. Contenho-me. Ela continua, preocupada, imagino eu, na sua tentativa de desenrolhar a garrafa: mais uma volta para ali, um puxa para aqui até que, finalmente, a rolha salta para fora. Servido o vinho, a graça e a serena tranquilidade que a caracterizam regressam, ri-se com a naturalidade que o carácter nobre lhe oferece e, voltando-se, volta a pairar por cima de todos nós enquanto, sorte a minha, me lança um sorriso que, na sua timidez envergonhada, desvenda um até aí escondido embaraço pela sua pouca destreza com rolhas e garrafas. E foi com esse sorriso que se instalou em mim a grande dúvida: se serão as musas que, afinal, caminham no chão como todos nós ou se, pelo contrário, são elas, as tágides, que nos fazem elevar a pairar juntamente com elas.
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Sejam musas, sejam tágides, o que importa é te elevam :-)
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