sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
A INVEJA
Primeiro abordei aqui a forma como um certo idealismo romântico conduz a uma profunda intolerância na sociedade portuguesa; depois como esse mesmo idealismo romântico conduz a uma forte instabilidade política e à incapacidade da reforma política. Finalmente, parece-me que há um último aspecto que deverá ser mencionado: como se chega a esse idealismo - o ideal por cumprir - e, daí, a um certo imobilismo social.
Uma análise rápida e superficial da história portuguesa serve para mostrar que nos últimos quinhentos anos o país sobreviveu permanentemente graças ao influxo de capitais exteriores ao território nacional: a partir de 1415 foram as riquezas do Norte de África; o desvio destas rotas levou-nos directamente à fonte na Índia. A partir do Século XVII, o declínio do império do Oriente foi substituído pelo ouro do Brasil e quando este se esgotou foram as riquezas das colónias africanas que nos alimentaram. Finalmente, quando estas se foram, em 1975, bastaram onze anos para que se abrissem novas fontes de receita externa: os Fundos Comunitários. Na incapacidade destes satisfazerem plenamente as necessidades de despesa lusitanas pode acrescentar-se a partir dos últimos anos um influxo cada vez maior de capitais estrangeiros a financiarem a economia portuguesa através da emissão de dívida, dívida a qual, nos traz agora a esta situação de falência. Não admira pois que seja difícil aos Portugueses compreenderem que o modelo de organização económica que temos não é sustentável: é que o problema não tem apenas quinze ou trinta anos; já vem desde os primórdios da expansão ultramarina. Aliás, é quase constrangedor verificar como este viver por conta é uma situação nacional que se repete, que perdura já há meio milénio. Como é possível que o mesmo modo de vida se mantenha inalterado durante tanto tempo e que continuemos a repetir os vícios do passado e incapazes de começar, de facto, uma vida nova? Porque continuamos nós atascados nesta incapacitante situação? A resposta terá que, forçosamente, residir naquilo que é comum a todos esses tempos e a todas essas situações: os Portugueses. Somos nós os donos do nosso destino já desde 1143 e, por essa razão, na origem da repetição de um determinado modo de vida terá que estar a mentalidade e a cultura do povo que experimenta esse determinado modo de vida. Já em 1871 Antero de Quental alertava que na origem da decadência portuguesa estaria também o modo de vida que se instalou com a descoberta das riquezas ultramarinas. Nos idos de quinhentos enriqueciam os aventureiros e aqueles que, de alguma forma, nos portos da capital procuravam o negócio proveitoso que permitiria o enriquecimento súbito e com o menor esforço possível. Quem atingia tal desiderato, rapidamente ostentava a sua (nova) riqueza através dos fatos que envergava e do muito dinheiro que largava nas tascas e no jogo. Claro está que, para aquele que observava a rápida transformação de remediado em milionário, uma pergunta se impunha: porque não fui eu que me lembrei daquilo; ou: porque não eu também? A inveja é mais fecunda onde uma súbita transformação torna desigual o que imediatamente antes era igual. Num país pobre a súbita chegada de (muita) riqueza proveniente do estrangeiro gerou uma grande alteração: aquilo que se podia ganhar num único negócio era mais do que uma vida inteira de árduo trabalho. O sonho português, aquilo que se almejava - e invejava - era portanto o de enriquecer sem ter que trabalhar. De alguma forma se enraizou o conceito de que o sucesso seria a riqueza e que quanto mais fácil esta fosse mais esperto, mais inteligente e melhor seria aquele que a obtinha. Afinal a lei do menor esforço é do que mais básico existe na natureza: sucesso é ter o maior proveito possível com o menor esforço possível. Ao mesmo tempo, aqueles que se aplicassem profusamente num trabalho que no final da vida não lhes deu a riqueza ostentativa que outros tanto exibiram, de alguma forma, esses que tanto trabalharam e tão pouco no final tiveram para mostrar, esses teriam falhado. O sucesso mede-se não no esforço e no trabalho mas sim na ostentação e na ausência de esforço: quanto mais eu tiver com menor trabalho melhor eu sou, mais esperto eu sou. Quem, portanto, trabalhou uma vida inteira e não tem nada para apresentar só pode é ser parvo. É deste espírito que advém a fidalguia falida que Antero de Quental brilhantemente nos revela nas Conferências do Casino. Diz-nos ele que "do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores". Alimentámos nós estas pretensões através das riquezas externas que fomos conseguindo alcançar. Ao mesmo tempo alimentámos este sonho de que as riquezas não dependem do trabalho. Que há uma solução perfeita para todos os nossos anseios que não passa pelo árduo e difícil caminho do trabalho. E é talvez aqui, nesta ética do sonho, aliada à exaltação dos feitos descobridores e conquistadores, que o idealismo romântico encontrou lugar até hoje: ainda hoje esperamos pela solução, ainda hoje dependemos das riquezas estrangeiras e ainda hoje a ostentação e o status social fazem decidir o que é uma vida de sucesso ou não. Onde lá fora servir às mesas, lavar pratos ou trabalhar num McDonald's é visto como normal por cada jovem que tem que aprender que não há sucesso na vida sem trabalho, já em Portugal estas menores tarefas aparecem aos jovens Portugueses de classe média (nem falo da alta) como indignas ou não merecedoras da sua condição social. Sobra-nos no entanto a ambição: mas uma ambição que não tem por onde se sustentar pois num país refém de riquezas externas as oportunidades surgem a quem controla - ou tem acesso - às fontes externas de riqueza. E assim, apesar da ambição, num país que produz pouco, o sonho de riqueza fica-se pela inveja e pela leitura ávida das revistas dos famosos: aqueles que (aparentemente) levam a vida de ostentação que muitos ansiariam poder levar. Estão, portanto, os Portugueses encurralados: entre uma ética de trabalho que não os impele à acção e uma estrutura económica que impede os poucos que tentam de serem bem sucedidos. Nesta ratoeira sobra o sonho, o ideal e a inveja. E, claro, o caminho da corrupção na manipulação das riquezas que provém do exterior como forma mais rápida e com menor esforço de enriquecer. Enquanto o país se frustra pelo sonho que não se cumpre, os novos aventureiros e os novos ricos sem trabalhar continuam a ter as suas oportunidades: em terra onde o acesso à riqueza vem de fora quem controla as portas de entrada de tais riquezas é rei. E cá continuam a pulular os novos-ricos: desde o pretenso industrial que de repente anda de Ferrari, ao cacique político do interior que se fez banqueiro ou ao autarca que se fez milionário, cá continuamos na mesma vida: espertos são os que se safam. E quem é que se safa? Quem, de uma forma ou de outra, consegue ter acesso às novas especiarias: ou seja, aos fundos comunitários ou, mais recentemente, à despesa do Estado. Vivemos, pois, no mesmo país de quinhentos: apenas agora os novos-ricos e pretensos fidalgos não são os intermediários de negócios tremendos mas sim os intermediários do empobrecimento generalizado dos Portugueses: pois são os novos-ricos hoje aqueles que bem sabem aproveitar a gestão intermediária do dinheiro sacado em impostos ou emissão de dívida (impostos futuros) para o funcionamento do Estado que controlam. E à medida que se vai fechando a torneira dos fundos exteriores, a fonte de riqueza cada vez mais passa a ser os (parcos) fundos do interior: os impostos. É o país dos Sócrates e dos Relvas; o país dos ajustes directos, das concessões e das nomeações. Entretanto, enquanto uns enriquecem à vista de todos, os Portugueses desesperam e do ancestral não é digno trabalhar porque os bem sucedidos não têm que o fazer passamos para o não vale a pena trabalhar porque só os espertos é que se safam. É a frustração e a injustiça que se abatem sobre o sonho idealista lusitano: não apenas o sonho está por cumprir como aqueles para quem o sonho se cumpre não o merecem. Mas há pior: é que de repente o sucesso, de tanta corrupção videirinha, passa a estar relacionado com este não merecimento: ai safou-se? Então deve ser corrupto. Deve ser ladrão. É aqui que a inversão da ética do trabalho se torna completa: não só o esforço não é valorizado como o sucesso é sinónimo de malfeitoria. Ao mesmo tempo que os novos-ricos passeiam os seus BMW's (que muitas vezes não conseguem pagar) quem anda com o (cada vez mais caro) passe da CP roga pragas a todos os que andam de BMW esquecendo que muita gente trabalha honesta e arduamente para os ter. Da cobiça à inveja é um passo e para a mentalidade lusitana a riqueza é agora uma coisa má: não porque não se deve ostentar (a ostentação continua a ser secretamente invejada) mas porque quem se safa não deve ter feito coisa boa. Mais: na terra das poucas oportunidades mas dos sonhos gigantes e com os exemplos corruptos que impunemente se espraiam pelas revistas e campos de golfe, quem tem uma ideia é logo deitado abaixo. E só assim poderia ser pois na frustração da injustiça sobra a inveja daqueles que, contra tudo e contra todos, alcançam o sucesso. E se chamar a quem se safa de malandro é o descarregar máximo da frustração de quem pensa não ter hipótese de se safar, então quando alguém legitimamente tem uma ideia ou é empreeendedor e mostra que afinal até havia hipótese a inveja toma o seu lugar: porque foi ele a lembrar-se daquilo e não eu? E logo leva o mesmo destino: deve ter tido uma ajudinha, com certeza. Tem amigos. É o factor c. Vilipendia-se o sucesso porque aceitar que o triunfo de alguém se deve ao seu engenho e talento implica aceitar que não se tem o engenho e o talento que o outro demonstrou ter. Hoje em Portugal, os exemplos de corrupção e a ética centenária do sonho da riqueza fácil são um factor de imobilidade e impedem o empreendedorismo. Ao mesmo tempo, aqueles que se atrevem a quebrar esses grilhos da frustração e da comiseração pagam pelo seu atrevimento com a inveja e a maledicência. No final, para mal dos nossos pecados, juntando-se todos estes ingredientes não podemos de facto ficar muito admirados com a situação em que nos encontramos. Infelizmente, é preciso compreender isto para que se comece realmente a mudar de vida: é que a nova vida vem com os valores do trabalho, não da ausência dele. Com o querer seguir os exemplos de esforço e não os caminhos da facilidade. Com admirar e querer imitar o sucesso proveniente do empreendedorismo e da inovação e não sonhar com o que há-de cair do céu. Com celebrar a honestidade e não vilipendiá-la. Com o ser intransigente para com os corruptos e não achar que eles é que a levaram de boa. Com o ser indiferente para o que ostentam e não sonhar a fama fácil, imediata e geradora de riqueza. Com não invejar e não sonhar secretamente com o querer ser invejado. Mas isso, por enquanto, é outro país ainda; nos entretantos, cá nos vamos comiserando com a nossa sorte e, quiçá, sonhando com o petróleo de Peniche que viria salvar-nos do abismo e permitir-nos continuar a viver como se nada fosse: ou seja, na eterna frustração e inveja.
Uma análise rápida e superficial da história portuguesa serve para mostrar que nos últimos quinhentos anos o país sobreviveu permanentemente graças ao influxo de capitais exteriores ao território nacional: a partir de 1415 foram as riquezas do Norte de África; o desvio destas rotas levou-nos directamente à fonte na Índia. A partir do Século XVII, o declínio do império do Oriente foi substituído pelo ouro do Brasil e quando este se esgotou foram as riquezas das colónias africanas que nos alimentaram. Finalmente, quando estas se foram, em 1975, bastaram onze anos para que se abrissem novas fontes de receita externa: os Fundos Comunitários. Na incapacidade destes satisfazerem plenamente as necessidades de despesa lusitanas pode acrescentar-se a partir dos últimos anos um influxo cada vez maior de capitais estrangeiros a financiarem a economia portuguesa através da emissão de dívida, dívida a qual, nos traz agora a esta situação de falência. Não admira pois que seja difícil aos Portugueses compreenderem que o modelo de organização económica que temos não é sustentável: é que o problema não tem apenas quinze ou trinta anos; já vem desde os primórdios da expansão ultramarina. Aliás, é quase constrangedor verificar como este viver por conta é uma situação nacional que se repete, que perdura já há meio milénio. Como é possível que o mesmo modo de vida se mantenha inalterado durante tanto tempo e que continuemos a repetir os vícios do passado e incapazes de começar, de facto, uma vida nova? Porque continuamos nós atascados nesta incapacitante situação? A resposta terá que, forçosamente, residir naquilo que é comum a todos esses tempos e a todas essas situações: os Portugueses. Somos nós os donos do nosso destino já desde 1143 e, por essa razão, na origem da repetição de um determinado modo de vida terá que estar a mentalidade e a cultura do povo que experimenta esse determinado modo de vida. Já em 1871 Antero de Quental alertava que na origem da decadência portuguesa estaria também o modo de vida que se instalou com a descoberta das riquezas ultramarinas. Nos idos de quinhentos enriqueciam os aventureiros e aqueles que, de alguma forma, nos portos da capital procuravam o negócio proveitoso que permitiria o enriquecimento súbito e com o menor esforço possível. Quem atingia tal desiderato, rapidamente ostentava a sua (nova) riqueza através dos fatos que envergava e do muito dinheiro que largava nas tascas e no jogo. Claro está que, para aquele que observava a rápida transformação de remediado em milionário, uma pergunta se impunha: porque não fui eu que me lembrei daquilo; ou: porque não eu também? A inveja é mais fecunda onde uma súbita transformação torna desigual o que imediatamente antes era igual. Num país pobre a súbita chegada de (muita) riqueza proveniente do estrangeiro gerou uma grande alteração: aquilo que se podia ganhar num único negócio era mais do que uma vida inteira de árduo trabalho. O sonho português, aquilo que se almejava - e invejava - era portanto o de enriquecer sem ter que trabalhar. De alguma forma se enraizou o conceito de que o sucesso seria a riqueza e que quanto mais fácil esta fosse mais esperto, mais inteligente e melhor seria aquele que a obtinha. Afinal a lei do menor esforço é do que mais básico existe na natureza: sucesso é ter o maior proveito possível com o menor esforço possível. Ao mesmo tempo, aqueles que se aplicassem profusamente num trabalho que no final da vida não lhes deu a riqueza ostentativa que outros tanto exibiram, de alguma forma, esses que tanto trabalharam e tão pouco no final tiveram para mostrar, esses teriam falhado. O sucesso mede-se não no esforço e no trabalho mas sim na ostentação e na ausência de esforço: quanto mais eu tiver com menor trabalho melhor eu sou, mais esperto eu sou. Quem, portanto, trabalhou uma vida inteira e não tem nada para apresentar só pode é ser parvo. É deste espírito que advém a fidalguia falida que Antero de Quental brilhantemente nos revela nas Conferências do Casino. Diz-nos ele que "do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores". Alimentámos nós estas pretensões através das riquezas externas que fomos conseguindo alcançar. Ao mesmo tempo alimentámos este sonho de que as riquezas não dependem do trabalho. Que há uma solução perfeita para todos os nossos anseios que não passa pelo árduo e difícil caminho do trabalho. E é talvez aqui, nesta ética do sonho, aliada à exaltação dos feitos descobridores e conquistadores, que o idealismo romântico encontrou lugar até hoje: ainda hoje esperamos pela solução, ainda hoje dependemos das riquezas estrangeiras e ainda hoje a ostentação e o status social fazem decidir o que é uma vida de sucesso ou não. Onde lá fora servir às mesas, lavar pratos ou trabalhar num McDonald's é visto como normal por cada jovem que tem que aprender que não há sucesso na vida sem trabalho, já em Portugal estas menores tarefas aparecem aos jovens Portugueses de classe média (nem falo da alta) como indignas ou não merecedoras da sua condição social. Sobra-nos no entanto a ambição: mas uma ambição que não tem por onde se sustentar pois num país refém de riquezas externas as oportunidades surgem a quem controla - ou tem acesso - às fontes externas de riqueza. E assim, apesar da ambição, num país que produz pouco, o sonho de riqueza fica-se pela inveja e pela leitura ávida das revistas dos famosos: aqueles que (aparentemente) levam a vida de ostentação que muitos ansiariam poder levar. Estão, portanto, os Portugueses encurralados: entre uma ética de trabalho que não os impele à acção e uma estrutura económica que impede os poucos que tentam de serem bem sucedidos. Nesta ratoeira sobra o sonho, o ideal e a inveja. E, claro, o caminho da corrupção na manipulação das riquezas que provém do exterior como forma mais rápida e com menor esforço de enriquecer. Enquanto o país se frustra pelo sonho que não se cumpre, os novos aventureiros e os novos ricos sem trabalhar continuam a ter as suas oportunidades: em terra onde o acesso à riqueza vem de fora quem controla as portas de entrada de tais riquezas é rei. E cá continuam a pulular os novos-ricos: desde o pretenso industrial que de repente anda de Ferrari, ao cacique político do interior que se fez banqueiro ou ao autarca que se fez milionário, cá continuamos na mesma vida: espertos são os que se safam. E quem é que se safa? Quem, de uma forma ou de outra, consegue ter acesso às novas especiarias: ou seja, aos fundos comunitários ou, mais recentemente, à despesa do Estado. Vivemos, pois, no mesmo país de quinhentos: apenas agora os novos-ricos e pretensos fidalgos não são os intermediários de negócios tremendos mas sim os intermediários do empobrecimento generalizado dos Portugueses: pois são os novos-ricos hoje aqueles que bem sabem aproveitar a gestão intermediária do dinheiro sacado em impostos ou emissão de dívida (impostos futuros) para o funcionamento do Estado que controlam. E à medida que se vai fechando a torneira dos fundos exteriores, a fonte de riqueza cada vez mais passa a ser os (parcos) fundos do interior: os impostos. É o país dos Sócrates e dos Relvas; o país dos ajustes directos, das concessões e das nomeações. Entretanto, enquanto uns enriquecem à vista de todos, os Portugueses desesperam e do ancestral não é digno trabalhar porque os bem sucedidos não têm que o fazer passamos para o não vale a pena trabalhar porque só os espertos é que se safam. É a frustração e a injustiça que se abatem sobre o sonho idealista lusitano: não apenas o sonho está por cumprir como aqueles para quem o sonho se cumpre não o merecem. Mas há pior: é que de repente o sucesso, de tanta corrupção videirinha, passa a estar relacionado com este não merecimento: ai safou-se? Então deve ser corrupto. Deve ser ladrão. É aqui que a inversão da ética do trabalho se torna completa: não só o esforço não é valorizado como o sucesso é sinónimo de malfeitoria. Ao mesmo tempo que os novos-ricos passeiam os seus BMW's (que muitas vezes não conseguem pagar) quem anda com o (cada vez mais caro) passe da CP roga pragas a todos os que andam de BMW esquecendo que muita gente trabalha honesta e arduamente para os ter. Da cobiça à inveja é um passo e para a mentalidade lusitana a riqueza é agora uma coisa má: não porque não se deve ostentar (a ostentação continua a ser secretamente invejada) mas porque quem se safa não deve ter feito coisa boa. Mais: na terra das poucas oportunidades mas dos sonhos gigantes e com os exemplos corruptos que impunemente se espraiam pelas revistas e campos de golfe, quem tem uma ideia é logo deitado abaixo. E só assim poderia ser pois na frustração da injustiça sobra a inveja daqueles que, contra tudo e contra todos, alcançam o sucesso. E se chamar a quem se safa de malandro é o descarregar máximo da frustração de quem pensa não ter hipótese de se safar, então quando alguém legitimamente tem uma ideia ou é empreeendedor e mostra que afinal até havia hipótese a inveja toma o seu lugar: porque foi ele a lembrar-se daquilo e não eu? E logo leva o mesmo destino: deve ter tido uma ajudinha, com certeza. Tem amigos. É o factor c. Vilipendia-se o sucesso porque aceitar que o triunfo de alguém se deve ao seu engenho e talento implica aceitar que não se tem o engenho e o talento que o outro demonstrou ter. Hoje em Portugal, os exemplos de corrupção e a ética centenária do sonho da riqueza fácil são um factor de imobilidade e impedem o empreendedorismo. Ao mesmo tempo, aqueles que se atrevem a quebrar esses grilhos da frustração e da comiseração pagam pelo seu atrevimento com a inveja e a maledicência. No final, para mal dos nossos pecados, juntando-se todos estes ingredientes não podemos de facto ficar muito admirados com a situação em que nos encontramos. Infelizmente, é preciso compreender isto para que se comece realmente a mudar de vida: é que a nova vida vem com os valores do trabalho, não da ausência dele. Com o querer seguir os exemplos de esforço e não os caminhos da facilidade. Com admirar e querer imitar o sucesso proveniente do empreendedorismo e da inovação e não sonhar com o que há-de cair do céu. Com celebrar a honestidade e não vilipendiá-la. Com o ser intransigente para com os corruptos e não achar que eles é que a levaram de boa. Com o ser indiferente para o que ostentam e não sonhar a fama fácil, imediata e geradora de riqueza. Com não invejar e não sonhar secretamente com o querer ser invejado. Mas isso, por enquanto, é outro país ainda; nos entretantos, cá nos vamos comiserando com a nossa sorte e, quiçá, sonhando com o petróleo de Peniche que viria salvar-nos do abismo e permitir-nos continuar a viver como se nada fosse: ou seja, na eterna frustração e inveja.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
EM CASA
A beleza e a força da sensação de se chegar a casa só é plenamente evidente para aquele que regressa; e só regressa aquele que antes partiu.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
domingo, 9 de dezembro de 2012
THE SOUL
"When this mixture of the elements will have been of a more beautiful and more perfect equality, than which nothing more subtle or more beautiful can be found..., then it is made fit to receive from the giver of forms a form more beautiful than other forms, which is the soul of man."
Al-Ghazali, Metaphysics (~1100)
Al-Ghazali, Metaphysics (~1100)
sábado, 8 de dezembro de 2012
À ESPERA DE SEBASTIÃO
Já aqui abordei a temática do romantismo português e como esse idealismo perfeccionista conduz a uma profunda intolerância na sociedade portuguesa. Há, no entanto, mais a referir a propósito deste ideal romântico que parece pairar, que nem uma nuvem, sobre a psique portuguesa: se por um lado é certo que a busca (ou melhor dizendo: a crença) numa solução perfeita dificulta o compromisso e a tolerância porque estes pressupõem a aceitação dos caminhos do meio, não será menos verdadeira a noção de que o perfeccionismo também impossibilita a acção: na ânsia do perfeito, porque este não chega, acaba por não se fazer nada. Compreender que o óptimo é inimigo do bom é uma boa base para se reformar: devagar, com calma, alterando aqui e ali, lá se vai andando rumo a uma melhoria que, apesar de nunca ser perfeita, gradualmente vai melhorando a vida das pessoas. Já os Portugueses, sempre na ânsia da grande refundação, manifestam permanentemente propósitos grandiosos, objectivos espectaculares e finalidades nobres e celestiais que, invariavelmente, terminam na nomeação de uma nova comissão que, de tanta importância e relevância que a nova reforma tem, é absolutamente necessária para os hercúleos trabalhos reformadores que se terão de enfrentar. Infelizmente, com não menos frequência, os heróis da reforma apesar de se prepararem esmeradamente em terra nunca chegam a levantar voo; já as respeitosas, fundamentais e veneráveis comissões, essas, perduram no tempo atestando simultaneamente a sua importância e a sua inoperância pois que fizessem elas o que seria suposto fazerem e ao fim de mês e meio a sua existência deixaria de ser justificada. A busca da grande reforma, da solução perfeita, é bastante evidente no progresso das reformas políticas ao longo dos últimos duzentos anos. Primeiro, o liberalismo era a solução que se impunha pois viria iluminar o irracional nacional com o radiante Aufklarung: as luzes do Iluminismo compunham a solução que, sendo antes mágica, era agora inevitável por ser racional. Newton e Descartes haviam antes procurado a prova divina e aberto o caminho à revolução tecnológica industrializante enquanto que em Coimbra se Comentava respeitosamente Aritóteles. Talvez por vir com tanto atraso, foi pois com deslumbre que Rousseau, Kant e Marx chegaram a Portugal para indicar o caminho da marcha triunfal da Humanidade face à sua felicidade; uma felicidade que tardava em chegar a um Portugal atolado num rotativismo caciqueiro que mais não fazia do que perpetuar os negócios daqueles que bem sabiam influenciar o débil "liberalismo" nacional. Talvez o trágico destino da mais revolucionária e original geração de 70, fruto da frustração indigente, seja o mais perfeito exemplo do romantismo lusitano: o suicídio. Frustradas as esperanças liberais na falência e na vergonha do Ultimatum, para onde se vira o ímpeto reformista-perfeccionista? Para a República, pois claro. Seria a República a salvação. Com ela Portugal resgataria o seu destino grandioso, manteria o Império e, porque não, faria nascer o Quinto Império, o global, onde a nação lusa - já o Padre António Vieira o afirmava! - restabeleceria o reino de Deus na Terra. Infelizmente para os propósitos Cristãos, os Republicanos eram pouco dados a Cristo e a secularização forçada bem como a perseguição religiosa, grandes avanços civilizacionais nas palavras dos grandes reformadores republicanos, mais não deram do que, falência após a falência, num estrondoso abrir de portas para a Ditadura que se lhe seguiria. E seria essa agora a solução: o salvador da pátria, Oliveira Salazar, punha as contas em ordem - tal como a moral - e assumia que Deus, Pátria e Família eram a solução que salvaria Portugal dos perigos da modernidade. Sobre as palavras sábias da Encíclica de Leão XIII, da acção nacionalista de Maurras e com a benesse de Cerejeira, sobre a máscara do progresso autoritário, o mais profundo conservadorismo vinha salvar Portugal. Quatro décadas mais tarde a salvadora já seria outra: seria a liberdade. A ditadura, afinal, era uma vergonha e a liberalizante abertura de Abril seria a solução. Lá vieram mais uma vez as grandes reformas: as nacionalizações, a descolonização (tão apressada quanto irresponsável, foram milhões os que lá perderam a vida nas décadas que se seguiram) e a marcha triunfante da liberdade que, em 1975, se confundia com o comunismo. Curiosamente, os sábios democratas de visão aquilina e acutilante tanto viram e tanto reformaram que em menos de dez anos lá foi o país à falência de novo... duas vezes. Mas logo apareceu nova solução: queríamos ser Europeus agora. A salvação final, enfim! A normalidade democrática e transformarmo-nos no bom aluno trariam a vida que agora víamos entrar-nos em casa pela televisão. E de fora vieram os milhões e milhões e com eles as directrizes de como ser europeu e moderno. E chegámos finalmente aqui: de tanto nos salvarmos tantas vezes sempre com a grande solução, aqui estamos novamente falidos a carecer de salvação nacional. Claro que lá vêm de novo as musas das soluções perfeitas gritar que a culpa é da Toika e desses malandros dos mercados, o que é preciso é rasgar os acordos, é a independência nacional (como em 1890) e o que é fundamental é uma revolução. Mais uma. Rumo a uma solução. Rumo à solução. Entretanto, do outro lado, lá vem o Governo mais reformista de sempre, supostos liberais, implementar o maior aumento de impostos de sempre e nomear umas comissões sobre como diminuir a burocracia das comissões. Cá continuamos na mesma: à espera da solução como quem espera por D. Sebastião. Numa noite de nevoeiro ele há-de regressar e com ele a solução perfeita, aquela que resgatará Portugal rumo ao destino que merece. Entretanto, os parasitas sociais, aqueles que vendem mundos e fundos, aqueles que vendem sonhos irrealizáveis servindo-os em receitas apuradíssimas que carecem de avental culinário e tudo, lá continuam a mandar no país e calmamente a fazer os seus negócios, sempre sobre o beneplácito dos seus amigos que, seja com robalos, seja com alheiras, lá estão no Estado, de mão estendida, a vender o interesse pátrio por meia dúzia de tostões. Mas não nos enganemos: a responsabilidade é nossa. É este sonho por cumprir que nos leva a acreditar nas promessas tão grandiosas quanto vãs de que algo vai mudar. Diz Vasco Pulido Valente que os "chefes do «liberalismo» inauguravam o seu reino com a fraude e o arbítrio para se enriquecer a si mesmos". Como é triste ver que em duzentos anos nada mudou. E a razão porque nada muda é porque continuamos sempre à espera das grandes soluções em vez de começarmos a tratar daquilo é preciso ser tratado. Pior: porque queremos tudo não nos contentamos com analisar, caso a caso, como podemos melhorar a nossa vida aqui e ali. Ficamos pelos jargões; pelos inultrapassáveis princípios e éticas republicanas que terminam invariavelmente nos testemunhos abonatórios da honra e da seriedade de quem roubou descaradamente. E depois vem o miserabilismo: lá fora é que é. E esperamos que a solução venha de fora: onde antes foi a pimenta da Índia, depois o ouro do Brasil, as riquezas africanas ou, finalmente, os milhões europeus, cá continuam os Portugueses à espera da civilização que, por ser artificialmente importada, nas palavras do Eça, nos fica sempre curta nas mangas. Em última análise o problema não é apenas a espera da solução perfeita: é que esta, por ser inatingível, se transforma na mais perfeita desculpa para não se ter que fazer nada. E enquanto não compreendermos que os princípios somos nós que os inventamos, que a ética é a do esforço e do trabalho e que não há liberdade sem a responsabilidade árdua de a manter bem podemos penar por D. Sebastião ou, já agora, vai dar ao mesmo, porque não pelo Godot ou pelo Salazar. Nas palavras de Jorge Palma, enquanto houver ventos e mar a gente vai continuar; mas palavras mais portuguesas talvez pudessem ser o cá se vai andando. Para onde é que eu já não sei.
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