Primeiro abordei aqui a forma como um certo idealismo romântico conduz a uma profunda intolerância na sociedade portuguesa; depois como esse mesmo idealismo romântico conduz a uma forte instabilidade política e à incapacidade da reforma política. Finalmente, parece-me que há um último aspecto que deverá ser mencionado: como se chega a esse idealismo - o ideal por cumprir - e, daí, a um certo imobilismo social.
Uma análise rápida e superficial da história portuguesa serve para mostrar que nos últimos quinhentos anos o país sobreviveu permanentemente graças ao influxo de capitais exteriores ao território nacional: a partir de 1415 foram as riquezas do Norte de África; o desvio destas rotas levou-nos directamente à fonte na Índia. A partir do Século XVII, o declínio do império do Oriente foi substituído pelo ouro do Brasil e quando este se esgotou foram as riquezas das colónias africanas que nos alimentaram. Finalmente, quando estas se foram, em 1975, bastaram onze anos para que se abrissem novas fontes de receita externa: os Fundos Comunitários. Na incapacidade destes satisfazerem plenamente as necessidades de despesa lusitanas pode acrescentar-se a partir dos últimos anos um influxo cada vez maior de capitais estrangeiros a financiarem a economia portuguesa através da emissão de dívida, dívida a qual, nos traz agora a esta situação de falência. Não admira pois que seja difícil aos Portugueses compreenderem que o modelo de organização económica que temos não é sustentável: é que o problema não tem apenas quinze ou trinta anos; já vem desde os primórdios da expansão ultramarina. Aliás, é quase constrangedor verificar como este viver por conta é uma situação nacional que se repete, que perdura já há meio milénio. Como é possível que o mesmo modo de vida se mantenha inalterado durante tanto tempo e que continuemos a repetir os vícios do passado e incapazes de começar, de facto, uma vida nova? Porque continuamos nós atascados nesta incapacitante situação? A resposta terá que, forçosamente, residir naquilo que é comum a todos esses tempos e a todas essas situações: os Portugueses. Somos nós os donos do nosso destino já desde 1143 e, por essa razão, na origem da repetição de um determinado modo de vida terá que estar a mentalidade e a cultura do povo que experimenta esse determinado modo de vida. Já em 1871 Antero de Quental alertava que na origem da decadência portuguesa estaria também o modo de vida que se instalou com a descoberta das riquezas ultramarinas. Nos idos de quinhentos enriqueciam os aventureiros e aqueles que, de alguma forma, nos portos da capital procuravam o negócio proveitoso que permitiria o enriquecimento súbito e com o menor esforço possível. Quem atingia tal desiderato, rapidamente ostentava a sua (nova) riqueza através dos fatos que envergava e do muito dinheiro que largava nas tascas e no jogo. Claro está que, para aquele que observava a rápida transformação de remediado em milionário, uma pergunta se impunha: porque não fui eu que me lembrei daquilo; ou: porque não eu também? A inveja é mais fecunda onde uma súbita transformação torna desigual o que imediatamente antes era igual. Num país pobre a súbita chegada de (muita) riqueza proveniente do estrangeiro gerou uma grande alteração: aquilo que se podia ganhar num único negócio era mais do que uma vida inteira de árduo trabalho. O sonho português, aquilo que se almejava - e invejava - era portanto o de enriquecer sem ter que trabalhar. De alguma forma se enraizou o conceito de que o sucesso seria a riqueza e que quanto mais fácil esta fosse mais esperto, mais inteligente e melhor seria aquele que a obtinha. Afinal a lei do menor esforço é do que mais básico existe na natureza: sucesso é ter o maior proveito possível com o menor esforço possível. Ao mesmo tempo, aqueles que se aplicassem profusamente num trabalho que no final da vida não lhes deu a riqueza ostentativa que outros tanto exibiram, de alguma forma, esses que tanto trabalharam e tão pouco no final tiveram para mostrar, esses teriam falhado. O sucesso mede-se não no esforço e no trabalho mas sim na ostentação e na ausência de esforço: quanto mais eu tiver com menor trabalho melhor eu sou, mais esperto eu sou. Quem, portanto, trabalhou uma vida inteira e não tem nada para apresentar só pode é ser parvo. É deste espírito que advém a fidalguia falida que Antero de Quental brilhantemente nos revela nas Conferências do Casino. Diz-nos ele que "do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores". Alimentámos nós estas pretensões através das riquezas externas que fomos conseguindo alcançar. Ao mesmo tempo alimentámos este sonho de que as riquezas não dependem do trabalho. Que há uma solução perfeita para todos os nossos anseios que não passa pelo árduo e difícil caminho do trabalho. E é talvez aqui, nesta ética do sonho, aliada à exaltação dos feitos descobridores e conquistadores, que o idealismo romântico encontrou lugar até hoje: ainda hoje esperamos pela solução, ainda hoje dependemos das riquezas estrangeiras e ainda hoje a ostentação e o status social fazem decidir o que é uma vida de sucesso ou não. Onde lá fora servir às mesas, lavar pratos ou trabalhar num McDonald's é visto como normal por cada jovem que tem que aprender que não há sucesso na vida sem trabalho, já em Portugal estas menores tarefas aparecem aos jovens Portugueses de classe média (nem falo da alta) como indignas ou não merecedoras da sua condição social. Sobra-nos no entanto a ambição: mas uma ambição que não tem por onde se sustentar pois num país refém de riquezas externas as oportunidades surgem a quem controla - ou tem acesso - às fontes externas de riqueza. E assim, apesar da ambição, num país que produz pouco, o sonho de riqueza fica-se pela inveja e pela leitura ávida das revistas dos famosos: aqueles que (aparentemente) levam a vida de ostentação que muitos ansiariam poder levar. Estão, portanto, os Portugueses encurralados: entre uma ética de trabalho que não os impele à acção e uma estrutura económica que impede os poucos que tentam de serem bem sucedidos. Nesta ratoeira sobra o sonho, o ideal e a inveja. E, claro, o caminho da corrupção na manipulação das riquezas que provém do exterior como forma mais rápida e com menor esforço de enriquecer. Enquanto o país se frustra pelo sonho que não se cumpre, os novos aventureiros e os novos ricos sem trabalhar continuam a ter as suas oportunidades: em terra onde o acesso à riqueza vem de fora quem controla as portas de entrada de tais riquezas é rei. E cá continuam a pulular os novos-ricos: desde o pretenso industrial que de repente anda de Ferrari, ao cacique político do interior que se fez banqueiro ou ao autarca que se fez milionário, cá continuamos na mesma vida: espertos são os que se safam. E quem é que se safa? Quem, de uma forma ou de outra, consegue ter acesso às novas especiarias: ou seja, aos fundos comunitários ou, mais recentemente, à despesa do Estado. Vivemos, pois, no mesmo país de quinhentos: apenas agora os novos-ricos e pretensos fidalgos não são os intermediários de negócios tremendos mas sim os intermediários do empobrecimento generalizado dos Portugueses: pois são os novos-ricos hoje aqueles que bem sabem aproveitar a gestão intermediária do dinheiro sacado em impostos ou emissão de dívida (impostos futuros) para o funcionamento do Estado que controlam. E à medida que se vai fechando a torneira dos fundos exteriores, a fonte de riqueza cada vez mais passa a ser os (parcos) fundos do interior: os impostos. É o país dos Sócrates e dos Relvas; o país dos ajustes directos, das concessões e das nomeações. Entretanto, enquanto uns enriquecem à vista de todos, os Portugueses desesperam e do ancestral não é digno trabalhar porque os bem sucedidos não têm que o fazer passamos para o não vale a pena trabalhar porque só os espertos é que se safam. É a frustração e a injustiça que se abatem sobre o sonho idealista lusitano: não apenas o sonho está por cumprir como aqueles para quem o sonho se cumpre não o merecem. Mas há pior: é que de repente o sucesso, de tanta corrupção videirinha, passa a estar relacionado com este não merecimento: ai safou-se? Então deve ser corrupto. Deve ser ladrão. É aqui que a inversão da ética do trabalho se torna completa: não só o esforço não é valorizado como o sucesso é sinónimo de malfeitoria. Ao mesmo tempo que os novos-ricos passeiam os seus BMW's (que muitas vezes não conseguem pagar) quem anda com o (cada vez mais caro) passe da CP roga pragas a todos os que andam de BMW esquecendo que muita gente trabalha honesta e arduamente para os ter. Da cobiça à inveja é um passo e para a mentalidade lusitana a riqueza é agora uma coisa má: não porque não se deve ostentar (a ostentação continua a ser secretamente invejada) mas porque quem se safa não deve ter feito coisa boa. Mais: na terra das poucas oportunidades mas dos sonhos gigantes e com os exemplos corruptos que impunemente se espraiam pelas revistas e campos de golfe, quem tem uma ideia é logo deitado abaixo. E só assim poderia ser pois na frustração da injustiça sobra a inveja daqueles que, contra tudo e contra todos, alcançam o sucesso. E se chamar a quem se safa de malandro é o descarregar máximo da frustração de quem pensa não ter hipótese de se safar, então quando alguém legitimamente tem uma ideia ou é empreeendedor e mostra que afinal até havia hipótese a inveja toma o seu lugar: porque foi ele a lembrar-se daquilo e não eu? E logo leva o mesmo destino: deve ter tido uma ajudinha, com certeza. Tem amigos. É o factor c. Vilipendia-se o sucesso porque aceitar que o triunfo de alguém se deve ao seu engenho e talento implica aceitar que não se tem o engenho e o talento que o outro demonstrou ter. Hoje em Portugal, os exemplos de corrupção e a ética centenária do sonho da riqueza fácil são um factor de imobilidade e impedem o empreendedorismo. Ao mesmo tempo, aqueles que se atrevem a quebrar esses grilhos da frustração e da comiseração pagam pelo seu atrevimento com a inveja e a maledicência. No final, para mal dos nossos pecados, juntando-se todos estes ingredientes não podemos de facto ficar muito admirados com a situação em que nos encontramos. Infelizmente, é preciso compreender isto para que se comece realmente a mudar de vida: é que a nova vida vem com os valores do trabalho, não da ausência dele. Com o querer seguir os exemplos de esforço e não os caminhos da facilidade. Com admirar e querer imitar o sucesso proveniente do empreendedorismo e da inovação e não sonhar com o que há-de cair do céu. Com celebrar a honestidade e não vilipendiá-la. Com o ser intransigente para com os corruptos e não achar que eles é que a levaram de boa. Com o ser indiferente para o que ostentam e não sonhar a fama fácil, imediata e geradora de riqueza. Com não invejar e não sonhar secretamente com o querer ser invejado. Mas isso, por enquanto, é outro país ainda; nos entretantos, cá nos vamos comiserando com a nossa sorte e, quiçá, sonhando com o petróleo de Peniche que viria salvar-nos do abismo e permitir-nos continuar a viver como se nada fosse: ou seja, na eterna frustração e inveja.
Admiro a tua capacidade de trasnformar em palavras o que penso. Não há likes facebookianos que consigam espelhar a admiração por esta análise soberbamente bem conseguida.
ResponderExcluirS.