"Night Time", XX, XX (2009)
sexta-feira, 30 de julho de 2010
A FELICIDADE E A MULTIDÃO
"E não é fácil alcançar a felicidade, mais ainda porque no caso de nos termos enganado no caminho, nos afastamos tanto mais dela quando para ela nos precipitamos com mais ardor. Quando o caminho conduz em sentido contrário, o nosso próprio impulso aumenta a distância. É preciso, pois, começar por definir bem o que é o objecto do nosso desejo, e examinar depois com cuidado o modo mais rápido de nos dirigirmos para ele; se a via é a correcta, dar-nos-emos conta, durante a própria viagem, dos progressos feitos todos os dias, e da nossa aproximação de um fim para o qual nos impele o desejo natural. Enquanto errarmos por aqui e por ali sem guia, obedecendo aos rumores e aos gritos discordantes de homens que nos chamam em direcções opostas, usaremos uma vida que os nossos enganos tornam breve, mesmo se trabalharmos dia e noite para cultivar o bem. Determinemos pois o objectivo para que tendemos e os meios de o alcançar; e não o façamos sem o apoio de um homem experimentado, que conheça bem o caminho no qual avançamos; pois nesta viagem, a situação não é exactamente a mesma que sucede nas outras: nestas últimas há uma caminho conhecido, interrogamos os habitantes e eles não nos deixam perder; mas aqui o caminho mais bem assinalado e mais frequentado é também o mais enganador. É por isso que a primeira coisa a fazer é não seguir, como uma ovelha, o rebanho das pessoas que nos precedem, pois nesse caso encaminhar-nos-íamos, não para onde é necessário ir, mas para onde vai a multidão. No entanto, nada nos arrasta mais para grandes males do que a conformação à voz pública, o pensar que o melhor está no assentimento do grande número, de tal modo que vivemos, não de acordo com a razão, mas por espírito de imitação. Daí resulta esse amontoado de pessoas que desabam umas sobre as outras. Um tal estado de coisas surge quando os homens estão apinhados, e se comprimem mutuamente, e ninguém cai sem arrastar outro na sua queda; os primeiros são a perda daqueles que os seguem. É isso que vemos acontecer na vida: ninguém se engana apenas por si próprio, sendo a causa e o instigador do engano dos outros. É prejudicial ligarmo-nos àqueles que vão à frente. Como cada um prefere acreditar nos outro, mais do que julgar, não se julga nunca, acredita-se sempre, o erro, ao transmitir-se de mão em mão, faz-nos rodopiar e depois cair; perecemos seguindo o exemplo dos outros. Curar-nos-emos na condição de nos separarmos da multidão; porque hoje a multidão toma resolutamente posição contra a razão e defende aquilo que causa a sua infelicidade."
Séneca, Da Vida Feliz
Séneca, Da Vida Feliz
quinta-feira, 29 de julho de 2010
VENTOINHA
A ventoinha faz o seu trabalho de forma lenta mas eficaz. Não falha. Para a esquerda e para a direita, num sinal de negação quase-eterno, o instrumento acena-nos com a sua frescura dando esperança a uma noite que parece não ter fim. É ritmada. Aparece, desaparece mas, sabemos nós, que nem o aparecimento nem o desaparecimento são coisas definitivas. Não são. A seguir a um vem o outro não podendo, por essa razão, ficar um gajo muito feliz com a frescura, porque logo de seguida ela se desvanecerá, como não pode também, na ausência da brisa temperadora, entrar em desespero porque, sabemos nós, não faltará muito para que ela retorne. É um ciclo completo. O melhor mesmo é louvar a brisa e o calor, porque sem este aquela de nada serviria, abençoados sejam, com estes podemos nós bem. Exaltemos os ciclos infinitos que, num carrossel mágico, nos levam a passear na existência universal. Viva o banal intermitente! Já o definitivo bem que pode esperar. Que se veja no acenar da ventoinha a recusa do definitivo: definitivo, definitivo, só mesmo a morte; é que essa, a cabra,, dizem-nos eles, não aparece nem desaparece, não é de intermitências: é, por essa razão, definitiva, a puta.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
A CONDIÇÃO HUMANA
"Dom Fabrizio sentiu passar-lhe a dureza do coração: o enfado dava lugar à compaixão por estes efémeros seres tentando gozar do exíguo raio de luz que lhes é concedido entre as duas trevas, antes do berço e após os últimos estertores. Como era possível enfurecer-se contra quem, pode-se ter a certeza, terá de morrer? Significava ser tão vil como as peixeiras que há sessenta anos ultrajavam os condenados na praça do Mercado. Até as macaquinhas nos poufs, até os velhos babuínos seus amigos, eram miserandos, insalváveis e queridos como o gado que à noite muge pelas ruas da cidade, conduzido ao matadouro; ao ouvido de cada um deles, havia de chegar um dia o tilintar que ele ouvira há três horas nas traseiras de S. Domenico. Não era lícito odiar senão a eternidade."
Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, pp. 197
Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, pp. 197
ROMEU E JULIETA
"Angelica e Tancredi passavam naquele momento diante deles, a mão direita enluvada dele apertando a cintura dela, de braços estendidos e compenetrados, os olhos de cada um fixos nos do outro. O negro do fraque dele e o rosa do vestido dela, misturados, formavam uma estranha jóia. Eles ofereciam o espectáculo mais patético de todos, o de dois jovens apaixonados dançando um com o outro, cegos aos recíprocos defeitos, surdos aos avisos do destino, com a ilusão de que todo o caminho da vida será liso como o soalho do salão, actores ignaros a quem um encenador dá a representar o papel de Julieta e de Romeu omitindo-lhes a cripta e o veneno, já previstos no guião."
Tomasi di Lampeduza, O Leopardo, p. 196
Tomasi di Lampeduza, O Leopardo, p. 196
A CEIFEIRA
"Os dois jovens olharam o quadro com absoluta indiferença. Para ambos, o conhecimento da morte era puramente intelectual, era por assim dizer um dado cultural e não uma experiência que lhes furasse a medula dos ossos. A morte, sim, existia, sem dúvida, mas era coisa para uso dos outros; Dom Fabrizio pensava que é pela ignorância íntima desta suprema consolação que os jovens sentem as dores mais acerbamente que os velhos: para estes, a saída de emergência está mais perto."
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, Teorema, 2007; p. 199
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, Teorema, 2007; p. 199
terça-feira, 6 de julho de 2010
MUNDANISMO (ou: como o estar vivo é o contrário de estar morto)
"Palermo naquele momento atravessava um dos seus intermitentes momentos de mundanismo, os bailes não paravam. Após a vinda dos piemonteses, após o caso de Aspromonte, afastados os espectros de expropriações e de violências, as duzentas pessoas que compunham «o mundo» não se fartaram de se encontrar, sempre as mesmas, para se congratularem por ainda existirem."
Giuseppe Tomasi de Lampedusa, O Leopardo, p.186
Giuseppe Tomasi de Lampedusa, O Leopardo, p.186
CARPE DIEM (II)
Na inevitável decadência irrelevante que nos espera a todos revela-se a vontade eterna: a única coisa que permite - implica - a aceitação da banalidade.
CARPE DIEM
Na refutação da eternidade, sobra a banalidade; na aceitação da eternidade, sobra a banalidade.
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