sexta-feira, 8 de julho de 2005

BOA NOITE, ESTE É O JORNAL NACIONAL

“E aqui lavra o fogo intensamente”, descrevia o Homem Que Apesar de Estar Não Estava Mesmo Lá, “que como podem ver está prestes a ficar completamente fora de controlo. Faltam homens, Manuela, para combater o fogo.” Moveu-se um pouco para mais longe das labaredas e retomou o seu discurso vazio de emoções. “Como podem ver, aquelas casas...vou pedir ao nosso câmera que as ap...sim...ali à direita....”, interrompeu-se ele com rigor, “...mas como dizia, como se pode ver agora nas imagens, aquelas casas, salvo intervenção superior, deverão estar irremediavelmente perdidas o que será uma grande tragédia. Dificilmente aqueles poucos homens com baldes e mangueiras conseguirão impedir que a tragédia, blah blah blah.... tragédia... blah...tragédia...blah blah... tragédia...”

Voltámos a ver a suada e adrenalinada face do repórter.
“Dona Maria, diga-me o que sentiu quando perdeu a sua casa?”. E ela chorou. “Oh...Meus Deus Nosso Senhor que perdi tudo o que tinha...”
as lágrimas angustiantes escorriam-me pelo ecran da televisão
“Não sei que faça... Que sou viúva desde que o meu António se foi e não tenho mais nada...”
uma poça formava-se no arraiolos da minha sala
“Mas diga-me, Dona Maria, agora que perdeu tudo o que tinha, como....ehhh... sente-se triste é?

“Como vimos aqui em primeira mão, na Televisão de maior audiência, este incêndio é uma grande tragédia. Não perca logo, a seguir ao Jornal Nacional, os desenvolvimentos dramáticos e horrorosos que a sua Televisão preferida, não vai deixar de passar repetidamente ao longo dos próximos dias. Nada nos escapará e...
o meu dedo moveu-se e
............................................
silêncio.
A boca da apresentadora movia-se repetidamente mas eu não a ouvia. Reparei naquele boca plastificada e lembrei-me das barbaridades que já de dentro dela tinha ouvido sair. E da do marido.
E acho que foi naquele momento.
Olhando para trás foi naquele dia que me revoltei. Olhei para a cara do repórter, que mais uma vez suava pela televisão dentro, e pensei
“se faltavam homens para apagar o fogo e tu estavas lá e não estavas a apagar o fogo então que raio és tu? Porque Homem não és com toda a certeza. Podías ter ajudado a apagar o fogo. Podías ter ajudado a Dona Maria com todas as tuas forças ao invés de expores a sua mágoa e tristeza em troca de uns pontos de audiência. Tu, Que Estavas Mas Não Estavas, consideras-te um espectador de índole superior. Observas e relatas a miséria alheia e nem quando está ao chegar da tua mão amenizá-la te dignas a perder a reles pose de um David Attenborough no National Geographic. Quem é a Dona Maria para ti? Um humano com h pequeno? Uma espécie de antílope corredor que foge da poderosa chita? Como podes ser um espectador? Como podes olhar a Tragédia e não te revoltares? Como podes olhar a Tragédia e apenas balbuciar o Seu Nome repetidamente porque quanto mais dramático melhor???

“Porque ele está morto”, disse-me ele por trás de mim.
Virei-me abruptamente.
“Quem és tu?”, tremeliquei eu vocalmente.
“Eu sou Herético, sou Aquele Que Se Revolta”, informou-me com serenidade.
“Foi o Grande Poeta”, continuou, “que disse que os cobardes muitas vezes morrem antes de morrer... Grita comigo e nem depois de morto morrerás...”

Olho para trás e sorrio. Estaria eu morto? Se estava ressuscitei gritando. E bem alto.

6 comentários:

  1. E não estaremos todos "mortos"? Provavelmente sim! Eu creio e confesso q ue não faria coisa diferente da do repórter. Censurável? Talvez... Além das Donas-qualquer-coisa de Portugal deveriam fazer-se reportagens sobre o estado da política, como a aplicação das receitas no orçamento de Estado. os fundos comunitários, onde param?
    Não é a Dona A, B ou C que importa...é o fogo como calamidade pública. E a seguir é o poder dos mass media. Têm-no demais, é certo, mas como controlá-lo? Leis, manifestações de policia? Adquirimos a liberdade de expressão e em especial a de imprensa e agora já não a queremos outra vez? Onde pára a solução?Eu sei que assim não está bem, sei que já estev pior. Quero melhor? Claro! Mas como? Enquanto não souber esta resposta rendo-me ao sistema.

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  2. Tal como temos os políticos que merecemos, temos os jornalistas que merecemos, porque esse estilo de jornalismo só existe porque há quem o consome.

    Como em tudo no mundo, não há inocentes.
    A causalidade é como uma bola de neve.Faz-me lembrar um samba do Chico Buarque que é de partir a rir (sim, da Ópera do Malandro)...

    "O malandro/Na dureza
    Senta à mesa/Do café
    Bebe um gole/De cachaça
    Acha graça/E dá no pé

    O garçom/No prejuízo
    Sem sorriso/Sem freguês
    De passagem/Pela caixa
    Dá uma baixa/No português

    O galego/Acha estranho
    Que o seu ganho/Tá um horror
    Pega o lápis/Soma os canos
    Passa os danos/Pro distribuidor

    Mas o frete/Vê que ao todo
    Há engodo/Nos papéis
    E pra cima/Do alambique
    Dá um trambique/De cem mil réis

    O usineiro/Nessa luta
    Grita(ponte que partiu)
    Não é idiota/Trunca a nota
    Lesa o Banco/Do Brasil

    Nosso banco/Tá cotado
    No mercado/Exterior
    Então taxa/A cachaça
    A um preço/Assustador

    Mas os ianques/Com seus tanques
    Têm bem mais o/Que fazer
    E proíbem/Os soldados
    Aliados/De beber

    A cachaça/Tá parada
    Rejeitada/No barril
    O alambique/Tem chilique
    Contra o Banco/Do Brasil

    O usineiro/Faz barulho
    Com orgulho/De produtor
    Mas a sua/Raiva cega
    Descarrega/No carregador

    Este chega/Pro galego
    Nega arrego/Cobra mais
    A cachaça/Tá de graça
    Mas o frete/Como é que faz?

    O galego/Tá apertado
    Pro seu lado/Não tá bom
    Então deixa/Congelada
    A mesada/Do garçom

    O garçom vê/Um malandro
    Sai gritando/Pega ladrão
    E o malandro/Autuado
    É julgado e condenado culpado
    Pela situação"

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  3. E que falsa sensação de poder esta que nos domina…

    “o meu dedo moveu-se e
    ............................................
    silêncio.”

    O mais giro é que não a calaste. Nem apagaste o fogo. Nem ajudaste a D. Maria.

    Poderias até mesmo ter mudado para um canal estilo National Geografic sobre vida no fundo do mar em que certamente haveria água suficiente para apagar o fogo. E não haveria D. Maria. Nem D. Manuela.

    E aqui sim. Aqui não há desgraças.
    Ou haverá?

    Que falsa sensação de poder esta que nos domina…

    MDR

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  4. uma das melhores maneiras de ajudar o mundo é mesmo não ligar a televisão, muito menos para ver telejornais! Acreditem que ajudo muito mais o mundo contangiando a minha PAZ e ALEGRIA do que com a angustia de quem acabou de assistir ao telejornal...é por essas e por outras que a minha TV normalmente não sai do OFFLINE

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  5. Gostei muito do texto. E percebo-te meu caro. Só não acho que a resposta seja tão “Herética”. Há de facto muita desgraça no mundo e é mesmo preciso fazer alguma coisa para a contrabalançar. Mas também há coisas boas. Muito boas. O mal trás consigo agarrada a oportunidade maravilhosa de fazer o bem. O inverso não acontece.
    Quanto aos jornalistas e até políticos (como li num dos comentários) há que ter cuidado com as generalizações. Também aí é fácil ver o mal. Olhemos primeiro para nós. Façamos nós uma auto-análise e aí, só aí, a acção. Revolta? Enfiem a revolta num bolso e pensem na solução. Não se esqueçam que um problema trás sempre consigo a oportunidade de uma solução. Às Donas Marias deste mundo eu só posso pedir desculpa porque são fracos os nossos políticos, os nossos bombeiros. São fracos. Como eu. Como nós. Para a próxima - oxalá estivesse longe essa próxima – espero estar ao lado dela e lutar.
    Eu? Estou vivo. Bem vivo.

    Gostei muito. Escreves bem pá. Abraço

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  6. Não será mesmo assim o trabalho do homem? Não será essa a função de um jornalista?
    E se o médico sentisse esses sentimentos por um paciente? De certeza que não era um bom médico porque não conseguia pensar em todos os outros doentes... Compreendo-te mas ao mesmo tempo consigo ver o outro lado, o lado profissional do jornalista que ali está apenas a fazer o seu trabalho.

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