“E aqui lavra o fogo intensamente”, descrevia o Homem Que Apesar de Estar Não Estava Mesmo Lá, “que como podem ver está prestes a ficar completamente fora de controlo. Faltam homens, Manuela, para combater o fogo.” Moveu-se um pouco para mais longe das labaredas e retomou o seu discurso vazio de emoções. “Como podem ver, aquelas casas...vou pedir ao nosso câmera que as ap...sim...ali à direita....”, interrompeu-se ele com rigor, “...mas como dizia, como se pode ver agora nas imagens, aquelas casas, salvo intervenção superior, deverão estar irremediavelmente perdidas o que será uma grande tragédia. Dificilmente aqueles poucos homens com baldes e mangueiras conseguirão impedir que a tragédia, blah blah blah.... tragédia... blah...tragédia...blah blah... tragédia...”
Voltámos a ver a suada e adrenalinada face do repórter.
“Dona Maria, diga-me o que sentiu quando perdeu a sua casa?”. E ela chorou. “Oh...Meus Deus Nosso Senhor que perdi tudo o que tinha...”
as lágrimas angustiantes escorriam-me pelo ecran da televisão
“Não sei que faça... Que sou viúva desde que o meu António se foi e não tenho mais nada...”
uma poça formava-se no arraiolos da minha sala
“Mas diga-me, Dona Maria, agora que perdeu tudo o que tinha, como....ehhh... sente-se triste é?
“Como vimos aqui em primeira mão, na Televisão de maior audiência, este incêndio é uma grande tragédia. Não perca logo, a seguir ao Jornal Nacional, os desenvolvimentos dramáticos e horrorosos que a sua Televisão preferida, não vai deixar de passar repetidamente ao longo dos próximos dias. Nada nos escapará e...
o meu dedo moveu-se e
............................................
silêncio.
A boca da apresentadora movia-se repetidamente mas eu não a ouvia. Reparei naquele boca plastificada e lembrei-me das barbaridades que já de dentro dela tinha ouvido sair. E da do marido.
E acho que foi naquele momento.
Olhando para trás foi naquele dia que me revoltei. Olhei para a cara do repórter, que mais uma vez suava pela televisão dentro, e pensei
“se faltavam homens para apagar o fogo e tu estavas lá e não estavas a apagar o fogo então que raio és tu? Porque Homem não és com toda a certeza. Podías ter ajudado a apagar o fogo. Podías ter ajudado a Dona Maria com todas as tuas forças ao invés de expores a sua mágoa e tristeza em troca de uns pontos de audiência. Tu, Que Estavas Mas Não Estavas, consideras-te um espectador de índole superior. Observas e relatas a miséria alheia e nem quando está ao chegar da tua mão amenizá-la te dignas a perder a reles pose de um David Attenborough no National Geographic. Quem é a Dona Maria para ti? Um humano com h pequeno? Uma espécie de antílope corredor que foge da poderosa chita? Como podes ser um espectador? Como podes olhar a Tragédia e não te revoltares? Como podes olhar a Tragédia e apenas balbuciar o Seu Nome repetidamente porque quanto mais dramático melhor???
“Porque ele está morto”, disse-me ele por trás de mim.
Virei-me abruptamente.
“Quem és tu?”, tremeliquei eu vocalmente.
“Eu sou Herético, sou Aquele Que Se Revolta”, informou-me com serenidade.
“Foi o Grande Poeta”, continuou, “que disse que os cobardes muitas vezes morrem antes de morrer... Grita comigo e nem depois de morto morrerás...”
Olho para trás e sorrio. Estaria eu morto? Se estava ressuscitei gritando. E bem alto.
E não estaremos todos "mortos"? Provavelmente sim! Eu creio e confesso q ue não faria coisa diferente da do repórter. Censurável? Talvez... Além das Donas-qualquer-coisa de Portugal deveriam fazer-se reportagens sobre o estado da política, como a aplicação das receitas no orçamento de Estado. os fundos comunitários, onde param?
ResponderExcluirNão é a Dona A, B ou C que importa...é o fogo como calamidade pública. E a seguir é o poder dos mass media. Têm-no demais, é certo, mas como controlá-lo? Leis, manifestações de policia? Adquirimos a liberdade de expressão e em especial a de imprensa e agora já não a queremos outra vez? Onde pára a solução?Eu sei que assim não está bem, sei que já estev pior. Quero melhor? Claro! Mas como? Enquanto não souber esta resposta rendo-me ao sistema.
Tal como temos os políticos que merecemos, temos os jornalistas que merecemos, porque esse estilo de jornalismo só existe porque há quem o consome.
ResponderExcluirComo em tudo no mundo, não há inocentes.
A causalidade é como uma bola de neve.Faz-me lembrar um samba do Chico Buarque que é de partir a rir (sim, da Ópera do Malandro)...
"O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé
O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português
O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor
Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis
O usineiro/Nessa luta
Grita(ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arrego/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom
O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação"
E que falsa sensação de poder esta que nos domina…
ResponderExcluir“o meu dedo moveu-se e
............................................
silêncio.”
O mais giro é que não a calaste. Nem apagaste o fogo. Nem ajudaste a D. Maria.
Poderias até mesmo ter mudado para um canal estilo National Geografic sobre vida no fundo do mar em que certamente haveria água suficiente para apagar o fogo. E não haveria D. Maria. Nem D. Manuela.
E aqui sim. Aqui não há desgraças.
Ou haverá?
Que falsa sensação de poder esta que nos domina…
MDR
uma das melhores maneiras de ajudar o mundo é mesmo não ligar a televisão, muito menos para ver telejornais! Acreditem que ajudo muito mais o mundo contangiando a minha PAZ e ALEGRIA do que com a angustia de quem acabou de assistir ao telejornal...é por essas e por outras que a minha TV normalmente não sai do OFFLINE
ResponderExcluirGostei muito do texto. E percebo-te meu caro. Só não acho que a resposta seja tão “Herética”. Há de facto muita desgraça no mundo e é mesmo preciso fazer alguma coisa para a contrabalançar. Mas também há coisas boas. Muito boas. O mal trás consigo agarrada a oportunidade maravilhosa de fazer o bem. O inverso não acontece.
ResponderExcluirQuanto aos jornalistas e até políticos (como li num dos comentários) há que ter cuidado com as generalizações. Também aí é fácil ver o mal. Olhemos primeiro para nós. Façamos nós uma auto-análise e aí, só aí, a acção. Revolta? Enfiem a revolta num bolso e pensem na solução. Não se esqueçam que um problema trás sempre consigo a oportunidade de uma solução. Às Donas Marias deste mundo eu só posso pedir desculpa porque são fracos os nossos políticos, os nossos bombeiros. São fracos. Como eu. Como nós. Para a próxima - oxalá estivesse longe essa próxima – espero estar ao lado dela e lutar.
Eu? Estou vivo. Bem vivo.
Gostei muito. Escreves bem pá. Abraço
Não será mesmo assim o trabalho do homem? Não será essa a função de um jornalista?
ResponderExcluirE se o médico sentisse esses sentimentos por um paciente? De certeza que não era um bom médico porque não conseguia pensar em todos os outros doentes... Compreendo-te mas ao mesmo tempo consigo ver o outro lado, o lado profissional do jornalista que ali está apenas a fazer o seu trabalho.