para o meu Pai
O Grande Homem subia com extrema dificuldade as escadas. Dois homens, não tão grandes, o ladeavam e ofereciam amparo para que ele não caísse. Não havia nada de especial no cimo das escadas. Não havia nenhuma necessidade específica que justificasse tamanha empresa. Mas ele continuou com todo o esforço do mundo a fazer aquilo que já fazia há oitenta longos anos. Não seria hoje que falharia. Não. Falhar, falham os jovens. Os velhos sabem. E Ele sabia. Sabia que não teria de subir aquelas escadas mais nenhuma vez.
António nasceu no interior esquecido e atrasado de um Portugal longínquo que vivia ainda os decrépitos últimos anos da I República. Quando o imponente General Gomes da Costa proferiu o seu infame discurso de Coimbra, António era novo de mais para perceber sequer que a revolução estava em marcha. Mas, com sagaz e precoce inteligência, ouviu palavra por palavra a transmissão radiofónica do primeiro discurso do novo Presidente do Conselho. Estávamos em 1930 e Oliveira Salazar tornava-se Chefe de Governo da Ditadura. António exultava. O povo estava entusiasmado acreditando no jovem estadista e no futuro do Império.
António ligava a tudo. Percebia tudo. Rapidamente ultrapassou a mãe na capacidade de compreender o mundo, se bem que este em Vila Nova de Foz Côa, a mais de um dia de distância de Lisboa, capital de um país orgulhosamente só, não fosse o mundo amplo e rico que uma mente dotada como a de António mereceria. Conhecia os pássaros e a natureza. Empenhava-se em pequenas engenhocas com os amigos, tendo ficado mestre na arte de contruir uns pequenos carros de corrida em que só os realmente bons e profissionais não se desfaziam monte abaixo sob o peso do seu tripulante. Era um nadador exímio. Quantas vezes se teria banhado no rio Côa, onde tantos anos depois se descobririam gravuras rupestres de particular importância. Os amigos respeitavam-no. Não era de andar sempre à pancada mas era de punho fácil. E impunha respeito.
A infância foi feliz. E traquinas. Um bom passatempo para ele e os amigos era esperar atrás de uma curva que alguém passasse numa bicicleta. Grandes risadas deram ao verem as caras surpreendidas daqueles que por força de um pau espetado por entre os rails da roda dianteira se estatelavam ao comprido no chão... Não era bonito. Mas tinha piada.
É interessante como aqueles que estão prestes a partir se lembram de muitas coisas que passaram a vida a esquecer-se. A infância... Esse mundo maravilhoso e sem limites onde nós nos multiplicamos numa imensidão de seres, cada um mais extraordinário do que o outro... Um dia somos polícias, no outro somos ladrões. Um dia o Super-Homem, no outro o Batman. Um dia jogador de futebol, no outro um brilhante piloto que conduz uma potentíssima mota que, por acaso tem um selim e pedais... Quando somos crianças podemos ser tudo e não temos de ser nada. Todas as opções estão em aberto.
O Grande Homem, sentado na sua poltrona favorita, olhava pela janela do seu escritório. Interrogava-se como seria possível que aquele António traquinas se tivesse tornado neste idoso em tão pouco tempo.
Há uma certa serenidade em quem aceita a única coisa que é definitiva.
O GrandeHomem aceitava a Coisa Que Não Deveria Ser com toda a dignidade. Quem é velho sabe que há batalhas que não se devem combater. E há algumas verdades inalienáveis.
Aos dezoito anos António viu-se em apuros. O seu pai falecera e, em plena II Guerra Mundial, encontrava-se com a mãe e duas irmãs a seu cargo.
Não foi uma altura fácil. Trabalhava durante a noite numa empresa de material electrónico onde aplicando-se com extraordinário afinco conseguia terminar as suas tarefas mais cedo e juntando quatro cadeiras, duas lado a lado, dormitava durante uma ou duas horas antes de ir para a Universidade. Estudar engenharia com tão poucas horas de sono não era fácil. Descobriu que conseguia dormitar nas aulas sem ser apanhado, escondendo a cabeça com a mão esquerda que se apoiava na sua testa enquanto mexia o seu lápis, como se tomasse apontamentos, com a mão direita.
Tirou o curso com distinção e mudou de emprego. Seria bem sucedido. Toda a gente que o conhecia o sabia.
O Grande Homem riu-se para si próprio. Como lhe pareciam confortáveis aquelas cadeiras naqueles tempos. Tinha saudades de sentir aquela força que só os jovens têm. A capacidade de tornar a adversidade em seu favor. De se sujeitar a tudo. A sede de conquista. A garra da vitória...
Entusiasmado pela recordação dessa energia levantou-se com o olhar do António traquinas...
António era um homem bem parecido. Levava as meninas a passear ou a ver um espectáculo. Viajava muito sempre com aquela mala de viagem que comprara na sua primeira vez em Paris. A Paris do final dos anos quarenta. Os cabarés, os artistas de rua e as óperas. A Paris libertada da guerra. A Paris renascida e livre...
António exultava com a Europa. Visitou todos os recantos do Velho continente. E foi a África. E correu toda a América. Viu o Novo Mundo e a esperança da América do Norte, visitou as velhas pirâmides da Central e experienciou os perigos da do Sul... Já mais velho visitou a Ásia. O fascinio exótico da Tailândia ou a comida intragável dos Chineses. Na sua viagem conhecera o mundo inteiro. Vira o bom e o mau. As belezas naturais e as conquistas arquitectónicas da Humanidade. Conhecera as gentes do mundo.
O Grande Homem tentava agora vestir, com bastante dificuldade, o seu sobretudo preferido. “O mais distinto do São Carlos”, dissera vezes sem conta aos seus filhos. O Grande Homem sorria sentindo-se o pequeno António a fazer uma qualquer traquinice. Vestir um sobretudo no pino do verão pode parecer uma loucura ou pelo menos uma profunda idiotice para qualquer um. Mas para o Grande Homem aquilo que os outros pensavam dele já não lhe interessava para rigorosamente nada. Era o seu sobretudo. E queria vesti-lo.
O Grande Homem era Grande porque era muito mais do que aquele velho e frágil ser humano. O Grande Homem era Grande porque era o António traquinas e sonhador ao mesmo tempo que o jovem que competia com marinheiros em bares a ver quem bebia mais shot´s de whiskey ou canecas de cerveja. Sentia-se fraco. Mas forte de espírito. Determinado. Sabia o seu destino. Mas continuava a sonhar. Sonhava com o sucesso dos seus filhos. Sonhava com o início de vida dos seus netos. Sonhava, ainda, com as brincadeiras dos seus bisnetos. Na última semana vira-os a quase todos. Estava pronto.
António casou mais do que uma vez. Que se soubese tinha três filhos. No entanto não seria totalmente descabido pensar-se que pudesse ter mais. Só ele, ou nem mesmo ele, o saberia. A sua vida era plena de conquistas e bons momentos. António era corajoso. Após o 25 de Abril, durante o PREC, quando os executivos de topo iam para o emprego nos automóveis das mulheres para que os operários não vissem a sua riqueza, António trocou o seu único carro por um distinto MG B GT. Ninguém se atreveu a riscá-lo.
António detestava comunistas. Não suportava as camisas para fora nem as barbas longas. Irritavam-no os discursos cassete de operários que queriam ter sem esforço aquilo para o qual ele estudara e trabalhara anos a fio sem dormir. Uma vez, quando saía da Companhia e viu umas dezenas de trabalhadores juntos num mini-comício marxista foi até lá e começou a chamar-lhes calões. O primeiro que se mexeu na sua direcção levou um murro nos queixos que ficou logo prostrado no chão. Tal como o segundo. Com a ajuda de mais dois colegas puseram fim à manifestação.
Nessa altura andavam a ocupar casas. A de António era isolada nas escarpas do Guincho. Dormia na sua cadeira de baloiço agarrado à sua caçadeira. Quando eles finalmente tentaram tomar-lhe a casa pô-los em fuga apontando a sua arma. Eram mais de vinte. “Sou divorciado, os meus filhos estão criados...Avancem! Avancem todos! A sério! Garanto-lhes que os primeiro doze caem!”, gritou-lhes ele. Ninguém avançou. E mais ninguém tentou ocupar aquela casa. “O gajo é maluco”, diziam os vermelhos da zona.
Estes acontecimentos marchavam pela mente do Grande Homem. Mais uma vez António exultou. Que grande viagem tinha sido aquela desde Vila Nova de Foz Côa, no distante ano de 1924 até ao ano 2005. Como o mundo tinha mudado. O seu último carro tinha duzentos cavalos. O primeiro que havia conduzido tinha dois bois... O mundo era tão mais pequeno com a televisão. Lembrou-se dos relatos emocionantes do Peça na Londres bombardeada pela aviação Nazi. Na altura a guerra não se via... A sua primeira televisão fizera sucesso. Toda a gente da rua tinha ido lá a casa para ver aquela primeira transmissão da Feira Popular. Que orgulho que tinha sentido! Lembrou-se daquela viagem a Amsterdão, no tempo em que não havia auto-estradas, para ver o Benfica jogar a final dos Campeões Europeus com o Real Madrid. Quando o Benfica perdia 2 – 0 chegou a pensar que tinha feito 4000 quilómetros para nada mas com um golo do Águas e outro do Cávem o Benfica acaba por empatar. A perder 3 – 2 ao intervalo, na segunda parte o Coluna volta a empatar e o grande Eusébio marca mais dois fazendo com que o Benfica fosse Bi-Campeão Europeu derrotando o mítico Real Madrid por 5 – 3. Poucos Portugueses estavam no Estadio Olímpico de Amsterdão e António era o que mais saltava ao ver com os próprios olhos o momento mais glorioso da vida do Glorioso.
Lembrou-se daquela modelo francesa que conhecera no combóio. Mais tarde viria a mudar-se para Portugal para estar com ele. Lembrou-se de muitas outras mulheres. Aquela alemã de cuja janela teve de saltar em cuecas para fugir do marido...
O Grande Homem pensou na sua mulher. Tinha sido a sua fiel companheira dos últimos anos. E chamou-a.
Ela pegava na mão do Grande Homem. A expressão dele era de fragilidade absoluta. Mas um sorriso despontava. A Grande Viagem tinha valido apena. Deitado na cama, sob os lençois e com o seu sobretudo, o Grande Homem despediu-se com um até breve. Afinal, na escala cósmica que diferença fazem dez, vinte ou cem anos? Vamos todos para o mesmo sítio...
O grande Homem apertou-lhe a mão. E depois deixou de apertar. A cabeça dela caiu sobre a cama. O António traquinas deixara de ser.
António é de facto um Grande Homem. É, e não "foi", porque os grandes homens são eternos, feitos da mesma matéria-prima de que são feitos os mitos. Em alturas como estas, mais do que lamentar a sua perda, todos aqueles que tiveram a honra de com ele se cruzar na vida (não foi o meu caso, infelizmente) se devem orgulhar e louvar a sorte que tiveram em poder colher os ensinamentos e o exemplo de altivez desse Grande Homem.
ResponderExcluirUm grande abraço!
Digo aqui o que te disse a título pessoal. É um bom exemplo da visão de um filho acerca de um Pai, mais q isso da tua visão, e digo-o enquanto alguém que te conhece, do teu pai. Aquilo que recolhes para pôr neste texto tem muito a ver com o teu imaginário quase infantil do Pai Herói. Do pai que não é violento mas não é cobarde, do pai viril, do pai com presença marcante por onde vai passando.E mais que tudo isso de um Pai, e aqui entra muito a tua visao do Mundo e filosofia de Vida, que não se importa com tudo o que a carneirada pensa! Eu acho que alguém que assume um ódio frontal aos vermelhos só pode ser boa pessoa, mas sei também que este seria unm pormenor que te iria irritar se não fosse o teu Pai.. é é aqui que se vê o que é o Amor Incondicional: os pequenos defeitos sao caracteristicas que nos levam a esboçar um sorriso quando a história chega ao fim!
ResponderExcluirNão sei se é um retrato fiel do teu Pai, mas sei que é um retrato fiel da forma como o vês e também de muito do que és...
Um beijo
Porventura não seria suposto deixar aqui qualquer tipo de comentário, mas não consigo evitar ler os blog's sugeridos pelo nosso amigo Pombo. Não posso, nem quero tecer comentários ao imaginário metaforico de que escreves, mas existe um António também no meu imaginário, o heroi António. Partilho da opinião da Di, qualquer homem capaz de enfrentar os vermelhos, é um grande Homem. Escreves muitissimo bem, ou pelo menos eu gosto de ler o que tens escrito. Continua assim, força!
ResponderExcluirGrande Pombo, é sempre um prazer receber-te neste blog. Agradeço as tuas palavras e também a sempre assídua participação!
ResponderExcluirPonto Preferido na 5 Dimensão Mais Conhecida Como Ponto Di, creio que tens razão. Mas não teremos todos nós o imaginário do Pai Herói?
Agamenon, bem vindo a este blog, agradeço-te o comment e estás à vontade. Faz como se estivesses em casa.
Muchas gracias a todos e um grande abraço (um grande beijinho para ti)!
É impressionante a capacidade como descreveste e sintetizaste a vida do Grande Homem. É provavelmente dos textos mais bonitos que já li até hoje e como a expectativa deixada é enorme, vou ficar serenamente à espera que publiques a versão livro! :P
ResponderExcluirAntónio...para mim, Daciano António....ou o Avô, o meu Avô Lebreiro.
ResponderExcluirEle era mesmo assim, determinado, ambicioso...
Mesmo á distância, sempre o admirei, e sei que ele a mim também...pena que nunca tenhamos falado sobre isso.
Para ele, os netos mais velhos surgiram cedo demais...sim, para ele, que sempre foi tão jovial, fazia-lhe confusão. Mas, fazia parte do seu feitio, por vezes "rude", como que a proteger-se da idade...
Depois, com os netos mais novos, despertou para o que é ser-se avô, e com os bisnetos deleitou-se...
Nos seus últimos dias, fiquei feliz por o poder ver todos os dias e ainda umas semanas antes os meus filhos estiveram com ele na sua casa...
É sempre com mágoa...esta é mais uma das ocasiões em que me sinto triste por estar tão longe...longe da minha família, dos amigos...sinto que estou a perder tempo de convívio...e o tempo, não volta atrás, não se repete.
O tempo passou...o amor continua e vive presente nos nossos corações...
A ti, meu tio, uma frase, "contas sempre comigo".
Abraço, Gustavo
Verdadeiramente comovente a maneira como descreves aquele homem que eu conheci há mais ou menos trinta e quatro anos atrás!!Fizeste-me lágrimas nos olhos. Ouvi muitas das coisas que aqui contas sobre ele.Só te posso enviar um grande beijo, um forte abraço pela intensidade com que amas o teu pai.
ResponderExcluir.....agora tenho a certeza que devia ter apanhado o aviao ha muito tempo atras...... queria que o Avo soubesse (sera que ele sabia?...) o quanto eu o adoro (porque na eternidade nao ha passado, nem presente nem futuro...) e que eu queria ter lhe dado a mao para que soubesse que eu estava realmente com ele, porque estar em espirito nunca e o suficiente por muito que nos tentemos nos convencer do contrario....
ResponderExcluirE para que nunca seja tarde demais outra vez, aqui te digo, a ti, que es uma pessoa muito especial para mim e desejo que continues sempre a ser fiel aos teus ideais, a ti proprio.... sempre!
Da tua sobrinha, um grande beijo e saudades tambem xxxxx
Tive sorte de o conhecer bem. De ir dormir a casa dele quando os meus pais viajavam.
ResponderExcluirCom ele vi pela primeira vez um filme para maiores de 18 anos.. tinha eu 7 ou 8, um filme do Chuck Norris. Divertia-me muito com ele.
Culto, trabalhador, distinto, muito cuidadoso com as suas coisas, sempre elegante, nada lhe dava mais prazer do que estar com os filhos, ouvir as suas experiências e dar-lhe uns conselhos de quem já muito viu e viveu. Assim era o meu Avô Daciano, tal como tu o descreveste.
Gostei muito do texto.
Um grande abraço do teu sobrinho nº3
Por tudo o que aqui li não posso deixar de lamentar nunca o ter conhecido e ao mesmo tempo que simpatizava com ele. Deixo publicamente um grande beijo de força e que continues a manter, nestas pequenas grandes coisas que são as emoções, a fidelidade ao que és.
ResponderExcluirGostei de ler o teu Texto sobre o nosso Grande Homem,logo hoje que vamos estar juntos para o lembrar!
ResponderExcluirUm abraço do Paulo!
No comments. Tento medo de não poder ser totalmente imparcial, mas adorei e chorei muito!
ResponderExcluirBjsMãe
fiquei impressionada com o bem que escreves... ilustraste maravilhosamente a vida desse Senhor, teu pai, que eu conheci. uma vida recheada de peripécias e aventuras... um homem trabalhador, coerente, corajoso, por vezes muito duro, mas que com o tempo se tornou mais humano, mais sensível e mais doce... uma vida plena!
ResponderExcluirsaboreei o texto linha a linha, tive pena que acabasse... tens que continuar a escrever e começar a pensar sériamente em publicar... beijinhos e parabéns! elsa
Sei q ja escreveste este texto já à algum tempo mas eu na altura comecei a lê-lo e não tive tempo para acabá-lo e agora finalmente tive tempo para vir aqui ler aquilo que ainda me faltava.
ResponderExcluirO texto está fabuloso, era mesmo assim o meu Avô, o Grande Homem, tal como algumas pessoas já o referiram aqui eu também o admirava muito, primeiro por ser meu avô e depois por ser a pessoa que era.
Posso dizer que o conheci bastante bem e que não deixaste nada sobre a vida dele por dizer.
Enquanto estava a ler o teu texto só pensava nas muitas recordações que tenho dele e que me ao de ficar na memoria para sempre.
Abraços do teu sobrinho nº4