quarta-feira, 6 de julho de 2005

AQUELA QUE DEIXOU DE SER


“De onde vêm os pensamentos?”, pergunta Aquela Que Não Sabia Muito Bem O Que Andava Aqui A Fazer.
“Da parte detrás da cabeça”, responde-lhe sarcasticamente Herético, Aquele Que Sabia Que Não Sabia Muito Bem O Que Andava Aqui A Fazer.
Hermética tentou revirar os olhos para dentro para tentar perceber o que ele lhe dizia. Não resultou. Um espelho talvez... Não... Também não. Hermética pensava mas não percebia porquê.
Resolveu fechar os olhos. Para se pensar não se precisa de ver. E Hermética ouviu. Ouviu o rouxinol do Torga. Ouviu a cascata. Ouviu, ainda, o barulho dos pneus nas grades da ponte.
“Cala-te”, grita-lhe Herético, “para pensares não precisas de ouvir”.
E Hermética tapou os ouvidos.
O vazio. Não... “Espera aí”... “Que cheiro é este?”
Era o cheiro da chuva de borracha que não pára de cair há mais de dez mil sóis. Só quem vive debaixo daquela ponte o sabe. Talvez os americanos também o saibam.
Mas para pensar não é preciso cheirar. Nem saborear. Nem tactear.
Hermética fechou-se.
O Castelo era muito pequeno no início. A porta era difícil de ultrapassar.
O Castelo era escuro no início. Início? Hermética não sentia nada. E se não sentia nada, não sentia o tempo. Não sentia o espaço. Não estava em lado nenhum.
“Mentirosa!”, disparou com mestria Herético. “Estás no Ponto Firme”, continuou, “Estás no Inultrapassável”.
Herético, com o súbito desejo de transmitir aquilo que sabia não saber muito bem, entusiasmou-se. “Repara Hermética como o Castelo é bonito. Repara como é grande. Vê sem abrires os olhos como o Castelo não tem fim. Estás a ver? E ouves todos os sons do mundo. Mas fá-lo sem destapares os ouvidos. Repara como é bela a praia dentro do Castelo. Passa os sentidos por essa areia fina e branca que se esvai por entre os teus dedos. Inspira esse perfume
Ungaro?
que tanto apreciavas no teu marido. Olha! Aí está ele de regresso do sítio donde ninguém regressa. Olha para cima Hermética”, ordenou-lhe, “vês as estrelas ? Repara na constelação de Leão...”

E o Cavalo Branco levou Hermética para além do Ponto Firme. Que nem um buraco negro com o seu desmedido vício da Gula, Hermética engole-se a si própria para se regurgitar em seguida nas multiplicidades que o seu ser ao longo de todos os tempos viveu. O Caleidoscópio é real. Todas as cores são mais vivas do que aquelas que a Deusa Íris lhe tinha apresentado. O Cavalo Que Era de Todas as Cores acelerou e Hermética viu. A semente astral que nos traz o cometa. O triciclo divino que balança indefinidamente pelo Cosmos. Sentiu a Fonte da Sabedoria. Falou com quem lhe deu a vida. Sentiu quem lha tentou tirar. Mas fugiu para mais longe ainda. Reconheceu o seu Caminho. Libertou-se do Dogma e renunciou a um Deus para se reencontrar com Ele logo de seguida. Afinal ela era Ele e Ele era ela. Sabia agora que sabia muito menos do que havia para saber. Com a força da emoção reviveu tudo o que tinha vivido mas muitas vezes mais e tanto mais depressa como mais devagar. Conheceu o Erro e amou a Virtude. Lembrou a Esperança. Sucumbiu ao Amor...

Sentiu o chão debaixo de si. O Cavalo Branco já não estava. Cheirou a terra molhada daquele dia de Primavera. Ouviu um Michelin 630 especialmente colocado em França para efeitos de IRS. Hermética abriu os olhos. E Hermética já tinha deixado de ser.

“Não posso deixar de te achar bela”, confidenciou Herético. Foi mais longe. “Aliás deixa-me dizer-te que tu, Aquela Que Perdeu O Nome Nos Terrenos Inultrapassáveis da Quinta Dimensão, és para mim a Alquimista. O que tocas reluz de sapiência...”
“Herético...”, ronronou gulosamente Alquimista. “De onde vêm os pensamentos?”
“Ó querida...”, retorquiu Herético, “toda a gente sabe que vêm de Paris no bico da Cegonha...”

4 comentários:

  1. Excente, Muito Bom, Perfeito! Muito boa aproximação à 5ª dimensão!
    Não é preciso ver para pensar..mas é preciso ter visto para imaginar...é preciso ter cheirado Ungaro (!!!) para o reconhecer... é preciso ter ouvido para recordar o som... não é preciso muito. Viveríamos bem conhecendo as 3 cores básicas e as duas neutras...o resto é imaginar..
    Se tudo o que empiricamente existe pode existir convertido, invertido ou até pervertido na 5ª dimensão, há algo que só lá existe. E essa é a mais-valia! O que é? Sentimentos!
    Deus! (embora eu não tenha ainda vagueado por esse ponto...)
    E não será o Ponto de Di a dar-te motivação...mas os pontos da 5ª dimensão onde tocarás!

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  2. Acho que sim, o ponto Di deve ser algo próximo do Grande Tomilho (para quem nele acredita) ou da LOMO (para os hereges). Creio que a quinta dimensão, pelo contrário, é algo que surge quando se diz "um homem pode pensar num cão, apesar de não ser um cão", é uma aproximação fiel, algo como que a sombra do Ponto Di. O ponto firme, o ponto a medianidade autoproclamada, do convencional, da do silêncio de tostadeira, paralelo ao qual se estende a 5ª dimensão coroada pelo ponto Di...

    A teologia da Cena é imparável. Talvez a Cena seja o ponto Di e o ponto Di seja a Cena levada às ultimas consequências.

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  3. ainda bem que gostaste desta vã e pouco clara aproximação à realidade pentadimensional... E é isso mesmo. Imaginar... Quem sabe se como diria o por-ti-há-pouco-tempo-descoberto bill, a vida não é mais do que um sonho, não existe a morte e nós não somos mais do que uma consciência comum que se exprime subjectivamente, ou seja, não seremos mais do que a imaginação de nós próprios... Queriam clareza? Cá está ela... Obrigado pelas tuas palavras. E o Ponto Di é de grande relevância multidimensional... :)

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  4. Eu gosto de dogmas tnt quanto gosto da certeza de o Sol nascer amanhã. Já sei, prova-me que não nasce para que acredite que nasce! Talvez seja só uma questão de fé (não a mesma que a tua JAlvim!). Realmente para mim a morte existe, como facto consumado para lá do qual nada existe a não ser pó. Não há espaço para mais almas do que corpos ou andaríamos a jogar ao infantil jogo das cadeiras!
    Quero crer que tenho individualidade, que SOU EU e que ÉS TU, que isto não é uma orgia cósmica de almas depravadas e levianas! Acredito numa 5ª dimensão, mas bem que existe dentro dela e ela dentro de mim numa ínfima parte e que nã sou apenas uma parcela de um puzzle.
    Talvez seja pretensiosa... Mas não deve vir daí grande mal ao mundo!

    P.S.- Gostaria de ver mais textos/aproximaçoes metaforicas e a roaçr o kafkiano à 5ª dimensão!

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