sexta-feira, 9 de março de 2012

A SUPERFICIALIDADE UNANIMISTA

Há dois ou três dias atrás deparei-me com uma crónica de Carlos Carreiras, recém empossado Presidente da Câmara Municipal de Cascais, no jornal i que me parece paradigmática de uma determinada maneira de pensar muito emblemática do pesadelo em que vivemos. Diz Carreiras na sua coluna semanal, numa crónica intitulada "Portugal S.A.", que "o país já perdeu demasiado tempo a discutir ideias e ideologias. Agora chegou a altura das soluções. Não temos de inventar a roda, precisamos apenas que ela gire mais depressa. Gerir um país não é muito diferente de gerir uma empresa em dificuldades". Salta aqui à vista que para Carreiras as soluções  - para as quais agora é o tempo - são independentes das ideias e ideologias  - com as quais já se perdeu demasiado tempo. Ou seja: para implementarmos as soluções temos que abandonar as ideias e as ideologias, ou pelo menos, as discussões sobre ideias ou ideologias. Como governar então? Como encontrar as soluções? Carreiras anuncia que é governando o país como uma empresa e aplicando as soluções com as quais todos concordamos. E quais são estas? Elucida-nos prontamente Carreiras: "com excepção dos extremos políticos, arrisco uma visão de futuro comum a todos partidos: um país próspero, justo e solidário. Um país influente no mundo, onde cada cidadão possa realizar o seu potencial de forma livre. Este é o máximo denominador comum". E como atingir tão magno e tangível objectivo? Esclarece-nos simpaticamente Carreiras: "também aqui penso que há um consenso significativo. Portugal estará tanto mais no centro da Europa quanto mais caminhar para o Atlântico. Deve voltar às suas indústrias tradicionais, como as pescas, a indústria naval, a agricultura e as florestas. Portugal deve investir no seu maior património, a língua e as relações com os países da CPLP. Alguém se opõe? Estou convencido que a resposta a esta pergunta é “não”. Repito a ideia: a tensão ideológica em matérias de crescimento económico é inútil. Tanto mais que o crescimento económico é um desígnio mobilizador". E pronto, problema resolvido. O objectivo é a prosperidade e a riqueza, os meios são o retorno às indústrias tradicionais  e o património cultural universal português. A questão que me assola é que a profundidade do pensamento de Carreiras fica-se por aqui: um desígnio e meia dúzia de soluções com as quais, obviamente, todos concordamos (?). E por isso calem-se os idealistas e os ideólogos, acabe-se com o debate desnecessário e prejudicial que agora é tempo de fazer.  Aquilo que salta à vista neste arrazoado de palavras, para além da superficialidade das soluções propostas, é a inocência da ideia de que bastando concordar em investir nas pescas e na indústria naval (partindo do pressuposto que tal concordância existe) nada mais haverá para discordar ou discutir. Porque, para Carreiras, as ideias políticas não têm nada que ver com, por exemplo, decidir qual é a melhor forma de investir na frota pesqueira. Nem passa pela cabeça de Carreiras que ideias sobre o posicionamento do Estado na economia que configuram a grande clivagem ideológica contemporânea afectem a implementação do desígnio nacional de Carreiras de investir nas pescas. Que a esquerda queira fazê-lo através de investimento público em, por exemplo, subsídios atribuídos aos futuros pescadores ou financiando a aquisição de modernas embarcações e que a direita pense que seria tal desígnio melhor servido através da diminuição de impostos sobre o peixe ou da abolição de certas taxas e regulamentos hoje obrigatórios é coisa que, aparentemente, não ocorre a Carreiras. Não lhe ocorre que um socialista veja a forma como dinamizar as pescas de uma perspectiva diferente de um liberal; que seja precisamente por terem perspectivas diferentes da vida que socialistas e liberais advogam políticas diferentes, sejam estas sobre as pescas ou sobre, sei lá, os regulamentos dos circos e das feiras, é coisa que Carreiras não compreende. Aliás, tanto não compreende nem lhe ocorre tal coisa que, numa crónica anterior, Carreiras afirma abertamente que "os tempos que vivemos ditaram o fim das ideologias. Hoje, no exercício do poder, não é possível ser comunista, socialista, liberal ou conservador. Porque as agendas ideológicas não têm lugar em tempo de emergência". Dúvidas houvesse que ficavam aqui esclarecidas.

Não sei o que é mais terrível: se a inocência superficial, de certa forma infantil, onde, perante a emergência, aquilo que nos separa será facilmente ultrapassado em torno dos mesmos objectivos, não interessando os meios para se atingir tais objectivos e ficando evidente que Carreiras não alcança a profundidade do que significa ser comunista, liberal ou conservador; ou se será pior ainda o perigo que tal ideia configura ao assumir que as diferentes ideologias são desnecessárias em estado de emergência como que anunciando uma solução salvífica que unirá o país em torno de um desígnio comum, evidente para ele, Carreiras, mas por alguma misteriosa razão vedado por um manto de ignorância aos comunistas, liberais e conservadores. É assim que as ditaduras aparecem; é a lógica do pensamento único: único de quem? Do iluminado que vê a verdade para além daqueles pobres ignorantes que passam a vida a discutir "ideias". Aquilo que escapa - misteriosamente também - a Carreiras é que as tais ideologias que tanto parece desprezar são perspectivas complexas, não estanques entre si, sobre como lidar com algo que, sendo aparentemente muito simples para Carreiras, para o comum dos mortais se revela profundo, misterioso e, no mínimo, um intrincado e irresolúvel desafio: o mundo dos homens. Para Carreiras tudo é, no entanto, simples e fácil: diz-nos ele, ainda numa outra crónica, que "nesta fase não se trata ideologia, nem de política: é tão simples quanto pôr Portugal a crescer e corresponder às necessidades de sobrevivência dos portugueses e do próprio país". Claro está, para quem é providencial e vê o que mais ninguém vê, tudo é simples: como resolver o problema do país? Abdicar das ideias - e agora também da política - e simplesmente pôr Portugal a crescer. Com a mesma facilidade com que o português médio se mete no carro e vai ali à praia do Guincho, sei lá, dar um mergulho, também Carreiras põe o país a crescer. Que para o tal comunista "crescer" signifique nacionalizar os meios de produção - tudo no Estado -, ou que para o socialista "crescer" signifique investimento público e subsídios - mais Estado - ou que para os conservadores e liberais "crescer" signifique menos impostos e menos subsídios - menos Estado - não significa nada para Carreiras. A política é um empecilho e a discussão é uma perda de tempo, uma pedra no sapato na implementação da “verdadeira” solução. Qual solução? Ficamos todos, menos Carreiras, sem saber.

Parece-me evidente que esta forma de "pensamento" - que não é apenas propriedade de Carlos Carreiras: estava, por exemplo, muito presente em José Sócrates - é um perigo enorme para a democracia, para a liberdade e para o país. Isto porque aqui temos uma forma de "pensar" que despreza o fundamento do qual a democracia se faz: a negociação permanente entre diferentes visões da vida; no entanto, ao mesmo tempo, é uma forma de "pensar" que valoriza o consenso (desde que seja o verdadeiro: obviamente o de quem "pensa" desta forma) mas que despreza tudo aquilo que é fundamental a um bom consenso: o debate, a diversidade de propostas, a divergência nos pensamentos e a genuína vontade de encontrar a melhor solução (que muitas vezes pode não ser a nossa). No entanto para políticos como Carreiras tudo isto é mau: para estes iluminados a melhor solução é a deles. Infelizmente como quem pensa desta forma pouco profunda tende a não pensar muito bem, as suas "soluções" tendem também a não ser as melhores. Tudo aquilo que este país precisa é precisamente do oposto do que Carreiras advoga, no entanto, para mal dos nossos pecados, num mundo mediaticamente intoxicado pelo medíocre e o banal não é de admirar que "pensamento" como este faça o seu caminho: é tão superficial que passa na fina estreiteza que peneira a profundidade do pensar e do discutir deste país.

 No entanto, se é certo que Carreiras se pretende pós-ideológico – para ele basta pôr o avental e mãos à obra, vamos fazer - sendo isto uma barbaridade intelectual, a questão que remanesce será: que ideologia é esta de Carreiras? E a resposta é: a ideologia própria do nosso zeitgeist, o espírito do nosso tempo. Toda esta ideia de que basta fazer, que as soluções são simples ou que o consenso se revela evidente são características inerentes à compreensão contemporânea da vida que se vai impondo: num mundo em progresso permanente, a vida avança, o movimento impele perpetuamente para a frente e nunca para trás e por isso, positivamente, os avanços tecnológicos e a vontade humana têm à sua disposição a solução para os problemas do homem. Isto é o positivismo modernista, o mais fiel sucessor dos ideais marxistas do Século XIX: também para estes haveria uma solução perfeita, porque racional, por isso também simples, para a problemática humana. É este positivismo neo-marxista que fez escola e que se instalou, muito por culpa da ignorância, nas mentes dos mais incautos, principalmente nas mentes daqueles que, como Carreiras, passando os dias nos corredores do poder, onde tudo lhes é oferecido, se convencem da infalibilidade do Estado como motor infinito e inesgotável da solução da sociedade; é por esta razão que é tão "simples" para Carreiras pôr o país a crescer: basta querer. As soluções? Basta descobri-las. Os meios? Basta inventá-los. Tudo é fácil porque é natural, é assim que estas pessoas vêem o mundo. Coerentemente, o positivismo neo-marxista, fiel às suas origens, é estatista por definição: o Estado oferece a efectivação coerciva e autoritária da pretensa solução simples para os problemas da sociedade; no entanto, o estatismo, quer pelas suas próprias limitações, quer pela natureza humana daqueles que o gerem - e tal como os momentos que vivemos o comprovam - ao querer controlar e dirigir a sociedade acaba por derivar no endividamento, na corrupção, na pobreza e, finalmente, na falência. Ora, é precisamente por isto que as ideias e as diferentes perspectivas da vida são tão fundamentais: alguém que rejeite o preceito racionalista em que um argumento racional nunca pode entrar em conflito com outro argumento racional, é alguém que rejeita o unanimismo (que percebe como impossível em liberdade) e abraça a incerteza (que vê como vantajosa na prudência a que obriga). Esses, os conservadores, são aqueles que se opondo ao progressismo positivista, assumem que ir para a frente não significa forçosamente ir para melhor. E como o que se quer fazer é ir para melhor, é bom que se reflicta e discuta bem antes de se decidir. Ao mesmo tempo, a compreensão sobre a falibilidade humana leva à aceitação da inevitabilidade do risco e do erro: por isso mesmo não se pode ser leviano nem querer decidir pelos outros. No fundo, cabe à sociedade - e a cada um em particular - a responsabilidade de encontrar as sua próprias soluções, sendo que estas são diferentes, porque somos livres, de indivíduo para indivíduo. Prudência, paciência, profundidade de análise; liberdade e responsabilidade, são estes os fundamentos da boa política realista que se pretende opor aos cantos de sereia da esquerda progressista; ou seja: o oposto do que Carreiras apregoa às Quartas-Feiras no jornal i. No fim de tudo, aquilo que é verdadeiramente extraordinário é que não seja esta retórica progressista demagógica produto de um apoiante de um partido do Estado - entenda-se o PS - mas que seja Carreiras um ilustre dirigente nacional do PSD e, pasmemo-nos, o actual Presidente do Instituto Francisco Sá Carneiro.

Em conclusão, é esta forma de “pensar”, é esta ideologia neo-marxista que recusa o pensamento – as ideias – e o debate democrático, que pulula pelos bastidores dos aparelhos partidários; e é apenas normal que aqueles que do aparelho de estado vivem não o queiram verdadeiramente mudar: quem é vencedor num jogo com determinadas regras não as quer alterar não vá correr o risco de perder o jogo. Da mesma forma: quem não quer mudar é quem quer que tudo fique na mesma apesar de passar a vida a gritar o contrário. Olhando para os textos de Carreiras, voluntariosos nas palavras, superficiais na análise, infantis nas propostas e perigosos – muito perigosos – no que deixam, apesar de escondido nas entrelinhas, bem à vista de quem quiser ver, vem-me à ideia a frase mítica de Tomasi de Lampedusa: “é preciso que tudo mude para que tudo fique como dantes”. Esta é a triste realidade: enquanto não deixarmos de ter a governar-nos esta ideologia neo-marxista estatizante que apregoa a constante necessidade de mudança ao mesmo tempo que a impede - criando a ilusão de um movimento perpétuo - é um “tudo como dantes no quartel d’Abrantes” e um "para a frente" ilusório que continuará sempre a significar um caminho, como até aqui, sempre para pior.

2 comentários:

  1. My idea of a perfect government is one guy who sits in a small room at a desk, and the only thing he’s allowed to decide is who to nuke. The man is chosen based on some kind of IQ test, and maybe also a physical tournament, like a decathlon. And women are brought to him, maybe ...

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