terça-feira, 25 de março de 2008
ALBERT CAMUS, "O ESTRANGEIRO"
"Acordei, porque alguém roçou por mim. Por ter fechado os olhos, a sala pareceu-me ainda mais branca. Na minha frente não havia uma única sombra, e cada objecto, cada ângulo, todas as curvas se desenhavam com uma pureza que me fazia mal aos olhos. Foi neste momentoque entraram os amigos da minha mãe. Ao todo, eram uns dez, e passavam em silêncio, nesta luz tão crua. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse. Eu via-os como nunca vira ninguém até então, e nem um pormenor das suas caras ou dos seus fatos me escapava. Não os ouvia, no entanto, e custava-me crer que fossem reais. Quase todas as mulheres usavam um avental e o cordão que as apertava na cintura mais lhes realçava a barriga inchada. Nunca havia notado que as barrigas das mulheres velhas eram tão grandes. Os homens eram quase todos muito magros e traziam bengalas. O que me impressionava nas suas fisionomias era que eu não lhes via os olhos,l mas unicamente uma luz sem brilho, no meio de um ninho de rugas.Quando se sentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabeça embaraçadamente, os beiços comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse percebido, ao certo, se me estavam a cumprimentar ou se era apenas um tique. Julgo que me cumprimentavam. Foi nesse momento que reparei que estavam todos em frente de mim, balançando as cabeças, em volta do porteiro. Por instantes, tive a impressão ridícula de que estavam ali para me julgar.
Pouco depois, uma das mulheres começou a chorar. Estava na segunda fila, escondida pelas outras, e eu não a via muito bem. Chorava dando pequenos gritos, regularmente: parecia-me que nunca mais pararia de chorar. Dava a ideia de que os outros não ouviam. Estavam encolhidos, tristes e silenciosos. Olhavam o caixão, a bengala ou qualquer coisa, e não tiravam os olhos desse único objecto. A mulher continuava a chorar. Eu estava muito admirado porque não a conhecia. Gostaria de não a ouvir mais. Não o ousava dizer, porém. O porteiro debruçou-se sobre ela, falou-lhe, mas ela sacudiu a cabeça, disse qualquer coisa e continuouo a chorar com a mesma regularidade. O porteiro veio então para o meu lado. Sentou-se ao pé de mim. Ao fim de um longo momento, informou-me, sem me olhar: «Era muito amiga da saenhora sua mãe. Diz que era a única amiga que tinha e que fica sem ninguém agora.»
Ficámos assim durante longos instantes. Os suspiros e soluços da mulher iam-se fazendo mais raros. Por fim, calou-se. Eu já não tinha sono, mas estava cansado e doíam-me os rins. Era o silêncio de todas aquelas pessoas que me era penoso, agora. De tempos a tempos, ouvia apenas um ruído estranho e não conseguia compreender de que se tratava. Acabei por adivinhar que alguns dos velhos chupavam o interior das bochechas, deixando escapar esses barulhos esquisitos. Estavam tão absortos nos seus pensamentos que nem davam por isso. Tinha mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada, nada significava para eles.Mas, hoje, creio que se tratava de uma impressão falsa."
in "O Estrangeiro" de Albert Camus.
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