quarta-feira, 12 de novembro de 2003

IRREALIDADES FACTUAIS





Há uma coisa que me parece evidente ao analisarmos brevemente a forma como a nossa sociedade funciona: Há uma grande preocupação com o parecer, muito mais do que com o ser.

E é que é mesmo assim. Se somos gordos, mais do que fazer dieta preocupamo-nos em parecer magros; se temos um nariz grande demais, corta-se um bocado; se não fomos à neve, vai-se para o solário

que grande bronze

compra-se o carro que se viu a estrela A ou B a conduzir na TV, provavelmente patrocinados pela empresa que vende o automóvel; pinta-se o cabelo para se ser louro porque eles e elas gostam é dos louros

já agora, porque é que não põem as sobrancelhas a condizer?

o pobre quer parecer rico e o rico quer parecer ainda mais rico; o feio sofre porque não é bonito, o bonito sofre porque o lindo é mais bonito que o bonito; as modelos ganham milhões para passar fome, obrigando aquelas que não ganham milhões e por isso não conseguem passar fome,

mas tentam

a sofrimento atroz porque, como diria Molière, “a grande ambição das mulheres é inspirar o amor”

talvez fosse

os hambúrgueres que vemos com ar tão apetitoso na televisão a anunciar uma qualquer marca de hambúrgueres, são feitos de plástico e envernizados

que delícia

os cães e os gatos que correm para aquela deliciosa refeição de ração, passaram dois dias sem comer

que agradável

aqueles senhores e senhoras que vão para aqueles programas das vidas reais

é o que diz o título

são actores contratados deliberadamente para enganar as pessoas; aquela agenda grátis que vem com o próximo número da revista não é grátis; já toda a gente deveria saber que não serve de nada deixar crescer o cabelo de lado e depois penteá-lo para o meio como se cabelo fosse coisa que não falta, e desculpem lá, mas acham mesmo que a Lili é uma mulher bonita?

A questão que permanece é, portanto, a seguinte: Porquê?

Porquê esta obsessão com o parecer? Quer dizer, vamos ser honestos. Não há problema nenhum em querer parecer bem. Até pelo contrário. Agora há problema é quando isso é feito à custa do ser. Quando abdicamos de partes de nós para parecermos algo que, se calhar, não tem rigorosamente nada a haver connosco.

E aqui é que está o cerne da questão. O ser é algo que vem de dentro. É um legado genético e espiritual. Tem essência. É real. É a nossa contribuição para todos os outros seres, ou seja, para a sociedade. Já o parecer é, supostamente, o reflexo do ser nos outros. É uma imagem. É uma ideia que os outros formam de nós. E esta imagem pode ser real ou virtual.

Nós vivemos em sociedade e, como tal, temos de nos forçar a conviver uns com os outros. É, por isso mesmo, salutar que tentemos adaptar o nosso ser aos outros. Que nos habituemos ao facto de que não estamos sós e que temos de, muitas vezes, de parecer algo que não somos. É uma contingência social. Mas há um limite. Uma coisa é adaptarmo-nos, outra é transformarmo-nos.

A evolução humana fez-se de alterações, mutações mas, principalmente, de adaptações. Quando nos adaptamos uns aos outros fortalecemos os nossos laços, incrementamos aquilo que nos une. Que nos une na diversidade. Saímos todos mais fortes. Quando nos transformamos perdemos algo. E analisando o que se passa hoje no mundo, aquilo que perdemos é a nossa originalidade. Todos queremos ser ricos, famosos, ir aos mesmos restaurantes, comer as mesmas coisas, ter os mesmos penteados e vestir as mesmas roupas. E quando não conseguimos ser, tentamos parecer.

E aqui é que está a diferença. Adaptarmo-nos à sociedade não é copiarmos aquilo que vemos na televisão. Isso é abdicarmos da nossa originalidade. É perdermos aquilo que nos distingue.

Como eu dizia, o parecer é a forma como os outros nos vêem. É aquilo que dizemos antes de abrirmos a boca. E, hoje em dia, o parecer está cada vez mais longe do ser. Parece que todos nós temos uma pequena máscara que nos confunde com a multidão e que impede os outros de verem aquilo que verdadeiramente somos. Ou então se somos críticos a esta crescente massificação, extremamos as nossas diferenças para vincar bem a todos que somos diferentes. E aí perdemos aquilo que nos une. Somos marginalizados. Ou marginalizamo-nos.

A evolução faz-se acima de tudo de comunicação. E por menos que queiramos o parecer continua a ser a nossa melhor forma de comunicação social. E isso é que importa. A evolução da Humanidade faz-se com aquilo que aprendemos uns com os outros, com os estímulos que transmitimos à comunidade e com as ideias que esta nos transmite a nós e que achamos boas e queremos utilizar também. É a comunicação social na verdadeira acepção da palavra. A comunicação interna da comunidade, da sociedade. E se nós desejamos que a evolução da comunidade seja saudável, seja para melhor e que nos transforme em melhores pessoas, então essa comunicação social deverá ser o mais honesta possível. A discussão que nela se passa deverá ser em torno dos reais problemas que nós

todos

encontramos, enquanto comunidade.

E isto é importante. Se o meu problema for um e eu me preocupar com tudo o resto menos com o meu problema, nunca o irei resolver. Como a evolução se faz de adaptação e a adaptação se faz de resolução de problemas, quem não resolve os seus problemas não evolui.

Isto quer dizer que nós enquanto comunidade deveríamos discutir aquelas coisas que podem influenciar a comunidade para bem ou para mal. Deveríamos tentar resolver os seus problemas. Mas não.

eu resolvo os meus problemas

Aquilo que fazemos é, principalmente, concentrarmo-nos no acessório e esquecer o principal, o essencial.

evolução é este pequeno espaço de tempo em que eu cresço

Mas isto traz ainda um outro problema. E é aquilo de que estava a falar antes. Se nós privilegiamos o parecer em detrimento do ser, só há uma conclusão possível: Passamos a vida a tentar resolver aquilo que PARECE um problema e não aquilo que É um problema. E isso é mandar tiros ao lado. E quem manda tiros ao lado acerta onde não devia. Cria novos problemas.

E isto é que é aquilo que nos deve preocupar. Porque isto É um problema. Nós ao nos alienarmos da realidade da vida, ao a transformarmos na vida virtual que gostaríamos de ter, transportamos a irrealidade para o campo dos factos. Quer isto dizer que desejamos uma realidade virtual e que, inadvertidamente, a transformamos numa irrealidade factual.

E com isto esquecemo-nos daquilo que é realmente importante, ou seja, daquilo que somos, daquilo que fomos e que aquilo que gostaríamos de ser agora será sempre muito menos do que aquilo que poderemos vir a ser no futuro.





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