sábado, 15 de novembro de 2003

A CERTEZA DA INCERTEZA





Não pretendendo complicar a simplicidade normal da discussão pública, há determinados pensadores que elaboraram teorias ao longo dos tempos que merecem ser alvo de referência, discussão e reflexão. Um deles é sem dúvida Karl Popper e o seu Princípio da Refutabilidade.

Este princípio, revolucionário para a primeira metade do século XX, consiste simplesmente no facto de que se queremos evoluir, os nossos raciocínios ou teorias são melhor verificados pela refutação do que pela confirmação.

Um exemplo. Se eu viver no meio do deserto e disser que nunca mais ali vai chover pelo facto de eu ali viver, esta afirmação pode ser tida como verdadeira

esta agora...

uma vez que, provavelmente, no dia seguinte não irá chover. Nem no próximo. Na verdade só se pode saber se esta afirmação é verdadeira ou falsa no dia em que efectivamente chover. Aí todos os habitantes do deserto saberão que eu estava errado. Até esse dia eles poderão acreditar que a razão da falta de chuva seria a minha presença no deserto. Facto, este, que poderia ser perigoso para a minha permanência nesse local...

Aqui a questão é que se chover eu tenho a certeza que a teoria está errada; se não chover a teoria pode, eventualmente, estar correcta. Podemos ver pelo outro lado. Se eu disser amanhã vai chover de certeza e efectivamente no dia seguinte chover, do ponto de vista científico eu podia saber ou, simplesmente, estar a advinhar. Agora se não chover no dia seguinte há a certeza absoluta que no dia anterior eu não sabia se ia chover ou não.

Isto pode parecer uma evidência. E é. No entanto, este princípio acarreta consequências que, se calhar, não são tão evidentes, princípios que a sociedade tende a esquecer. Se não vejamos:

Se a única forma de eu poder saber se determinado princípio é válido ou não, é demonstrar que ele não é válido, então um argumento válido nunca pode ser validado, porque, por e simplesmente, não pode ser desmentido.

Isto quer dizer que não existem dogmas. Que não existem verdades absolutas. Que tudo aquilo que acreditamos poderá um dia ser desmentido e que só não o terá sido até agora porque ou não temos o conhecimento suficiente para o fazer,

ainda não choveu

ou então nunca o será porque é verdade.

nunca mais vai chover

Ora isto é fabuloso. E é mesmo. É que é assim que se criam os dogmas que, supostamente, não deveriam existir.

agora é que são elas...

Isto por uma razão muito simples. Eu posso gerar uma série de argumentos que nunca poderão ser desmentidos, não por serem verdades

talvez sejam

mas porque não podem ser refutados; logo, poderão ser considerados como verdades. Existem muitos e se repararmos bem são estes mesmos que gerem a sociedade:

Religiões tidas como as verdadeiras, sistemas políticos tidos como os melhores, objectivos tidos como essenciais, teorias tidas como reais, etc... A verdade

e esta é mesmo verdade

é que tudo isto pode ser verdade agora mas poderá vir a não ser verdade no futuro. Podemos estar enganados.

E aqui é que bate o ponto. Se existe a possibilidade de estarmos enganados

amanhã pode chover

como é que nós devemos de lidar com isto. E isto é fundamental porque nós temos o hábito de fazer estátuas aos heróis que estavam certos e crucificar os vilões que se enganaram. Na realidade, sempre aprendemos mais com os vilões que se enganaram. Já repararam? Quem é que quer cometer o erro que outro já cometeu antes?

Só há uma solução para esta incerteza constante em que, à luz do Princípio da Refutabilidade, somos forçados a viver: A Tolerância.

Tolerância com aqueles que se enganaram porque com eles aprendemos, quanto mais não seja, aquilo que não se deve fazer;

Tolerância com aqueles que acertaram porque ainda se pode vir a provar que afinal não estavam assim tão certos;

Tolerância ao não assumirmos certas verdades como absolutas e verdadeiras porque afinal partilhamos 98% dos nossos genes com um gorila e há boas possibilidades de um gorila, por mais inteligente que seja, se enganar. Nem que seja ás vezes...

Tolerância para com todos aqueles que acham que nós estamos enganados porque podem bem ter razão.

Tolerância para todos aqueles que nós achamos que não estão certos porque podemos bem estar enganados.

A questão será, então: Somos nós, comunidade de humanos, uma sociedade tolerante? Sabemos respeitar as nossas diferenças? Sabemos que aquilo que temos como certo será sempre algo que é, forçosamente, incerto?

Penso que não. Todos os dias morrem pessoas em nome de Deus. Ao longo da história morreram milhões em nome de um sistema. E no meio disto tudo todos nós temos certezas sobre como é que as coisas foram, são e como é que elas deveriam ser.

A acrescentar à Tolerância temos ainda a Prudência. Não dar passos apressados sem diminuirmos a incerteza ao mínimo possível. Possível porque se tentarmos que a incerteza seja zero nunca iremos chegar a lado nenhum.

Prudentes nas decisões que nos envolvem a todos mas arrojados nas possibilidades individuais.

E isto é o melhor que existe no mundo. É que se o Princípio da Refutabilidade nos diz que tudo o que sabemos pode estar errado, também nos diz que tudo o que não sabemos é, por exclusão de partes, possível. O limite da nossa evolução será sempre a nossa própria imaginação. Deveremos manter sempre todas as nossas possibilidades em aberto. Devemos acreditar, acima de tudo, em nós próprios e nas nossas capacidades. É que estas podem ser verificadas pela acção.

Esta é a única excepção ao Princípio da Refutabilidade: Aquilo que depende única e exclusivamente de nós. As nossas capacidades só podem ser verificadas pela experimentação dos nossos limites. Pela primeira coisa que não fomos, efectivamente capazes de fazer. E nada nos garante que, mesmo esta, não a possamos vir a ser capaz de fazer no futuro.

E isto abre-nos as portas do universo. Porque sabemos muito menos do que poderemos vir a saber.

De facto, temos ainda muito que andar. Ainda temos muito que nos enganar. Ainda temos muito que sonhar. A verdade é que depois de toda a evolução que experienciámos somos forçados a voltar ao início. Como Sócrates disse, só sabemos que nada sabemos.

É a certeza da incerteza. É o dogma do desconhecimento. Para o bom e para o mau. No melhor e no pior.

Argumento. Tenho a mais profunda certeza que no planeta Terra não existe um único dragão que deite fogo pelo nariz e que coma criancinhas ao pequeno almoço. Provem lá que isto é verdade. Difícil.

Outro argumento. No futuro iremos todos juntos explorar o espaço e conquistar conhecimentos fantásticos, inimagináveis e maravilhosos. Provem lá que isto é mentira. Fico à espera.

A verdade é que aquilo que nos sobra é o facto de vivermos no incerto, no misterioso. E como Einstein disse, “não há nada mais belo no mundo do que o misterioso”...

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