CRÓNICA DE UMA BEBEDEIRA SOLITÁRIA
por HJ
O João queria ser cowboy.
Andar a cavalo sem destino, de cidade em cidade, de saloon em saloon.
Duelos.
Desafios. A incerteza do amanhã. A adrenalina do medo constante da finitude.
Mulheres. Saias compridas em fuga, com medo à espera de alguém que as salve do desconhecido, do incerto.
O João queria ser salvador.
Heróis.
Heróis temidos e falados pelo deserto fora em murmúrios venerados de respeito.
Cartazes publicitários avisando-nos que o João era um herói. Que nos compravam o João.
Velhos tempos. Whisky.
Cadeiras de baloiço que rangem sob o peso de um velho homem do campo.
Calma. Tempo que se esgota num lamento sem fim. Sem expectativas.
O João queria ser cowboy.
Destino. Pressão. Necessidade. Sociedade mecanizada onde já não cabem cadeiras de baloiço. Pelo menos das que rangem.
Whisky.
Whisky em bares cheios de pessoas sozinhas.
Imortais. Imortais ausentes do seu próprio destino barulhento e veloz.
O João olhou à volta e viu a manada. O João era cowboy.
Humanos à espera de algo difícil de definir.
O João tem muitos cavalos mas eles não bebem água. Pagam portagens.
O vapor de um combóio. O escape de um autocarro.
O João queria ser herói.
Hoje não há heróis. Há caixas de supermercado, cheias de coisas que o dinheiro pode comprar.
Dinheiro. É a espinha dorsal de um mundo onde os cartazes publicitários nos vendem os heróis. Vendem, não compram.
Whisky. Copos. Coisas cheias que se esvaziam num ápice.
Fuga. Fuga para um sítio longe demais.
Mais dois whiskys e lá vai ele na sua fuga para lado nenhum.
Os cavalos não se despistavam. Sabiam sempre o caminho de casa.
Mas qual casa? O João está em fuga. Em fuga para casa.
O João queria ser herói. Os heróis não fogem.
Sapateado trémulo nas escadas para cima. Os heróis não tremem.
Mãos tremidas falham na fechadura de uma porta forte demais. Os heróis não falham.
Olhos enevoados não encontram o interruptor. Para quê?
O sofá até range. Um ranger que se transforma numa porta para outro sítio. O tal sítio longe demais.
O João adormeceu.
O herói fugiu.
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