Segismundo nunca tinha disparado uma arma. Não sendo apenas por essa razão, suores frios escorriam-lhe pela fronte. As mãos tremiam-lhe. O seu cérebro funcionava em modo de sobrevivência o que significava forçosamente que o instinto se sobrepunha à razão. Mas Segismundo não sabia disso. E esse foi o seu erro.
Em 1981, no Casal de Santa Filomena, um bairro degradado da Amadora, numa rua cujo nome era o número 7, viviam várias famílias de fracas possibilidades financeiras. Na porta 23 moravam os Lima. Luís e Soraia, os pais, passavam sérias dificuldades para, com apenas dois quartos e sem casa de banho, criarem os seus cinco filhos. Quando Soraia no final do Verão engravidou novamente o sentimento não foi de grande felicidade. Joel não se pode dizer que tenha sido desejado.
Ao longo dos seus 23 anos Joel já tinha estado por variadíssimas vezes em conflito de interesses com as autoridades. Aos 9 anos fora apanhado a roubar fruta numa mercearia o que lhe valeu um sério susto na esquadra da Mina. Foi aí que conheceu o Mário, um rapazinho angolano que, sendo mais velho, lhe ensinou umas quantas coisas que talvez fosse melhor não ter aprendido. Os “mineiros”, alcunha que Mário havia inventado para os polícias destacados naquela esquadra, rapidamente passaram a ter Joel debaixo de olho. Daí em diante foram várias as vezes que Joel foi dormir à “Mina”, chegando mesmo a passar um ano num reformatório. Nunca se meteu a fundo na droga mas descobriu nela uma forma de garantir o seu ganha pão.
Foi no ano passado que Joel se endireitou. A razão desta súbita mudança de comportamento chamava-se Eunice.
“Estou farta!”, atirou ela, “Não te vou buscar à “mina” nem mais uma vez!”. E pronto. Podia ter sido mais uma frase de uma discussão que se repetia por tantas casas daquele bairro. Mas Eunice era diferente e Joel sabía-o. Tinha de optar. E ele escolheu aquela rapariga de olhos verdes que tanto o fascinava.
Naquela manhã fria de Novembro o supermercado estava praticamente vazio. Os carrinhos circulavam livremente pelos corredores sem obstáculos nenhuns.
Quando Joel entrou para comprar pão e leite não imaginava quem é que iria encontrar ali.
“Jôjô... man... ‘tavas nos frosques?”, ouviu por detrás da sua cabeça. “Já não te via há bués...”, continuou Mário perante um Joel incomodado. No último ano evitava Mário sempre que podia. Isto tinha sido facilitado porque mais de metade desse ano Mário havia-o passado na cadeia. Não o fora visitar. E quando ele saira há um mês Joel passara a não frequentar os sítios onde sabia que o poderia encontrar.
“Não man... Tenho andado busy... C’a miúda a moer-me a cabeça... ‘Tás a ver?”, respondeu-lhe um Joel atrapalhado. E tinha razões para isso. Quando se está dentro de uma organização criminosa, por mais pequena que ela seja, sair é sempre difícil.
“Yah man... É na pura... Mas... ainda há o stress daquelas 50 gramas que me cravaste antes de eu ir para a choldra...”, lembrou-lhe Mário da razão de tanto incómodo.
“Pois... Eh... ando à rasca man... Pá’ semana?”, alvitrou esperançado.
“Man... Se eu esquecer a cena... ‘Tás a ver man?... É um favor que faço... Né?”, Mário falava como um agente do KGB em plena guerra fria. “E tens de morder man que...”, continuou em tom secretivo, “se eu ‘tou pa’ ti... tu ‘tás pa’ mim...”,terminou com um gesto dramático que parecia mimetizado do D. Corleone de Marlon Brando.
“...Eh...E que favor é esse, man?”, inquiriu um fortemente apreensivo Joel.
“Ohhhhhh... n’é nada bro...”
“Nada como? Droga?”, insistiu Joel.
“Não te preocupes man...”
“Aquilo foi uma cena muit’a marada”, declarou um nervosíssimo Júlio perante os dois Inspectores da Polícia Judiciária. “Nem sei o que vos diga...”,continuou.
“Tenha calma e conte-nos exactamente o que viu. Nem mais nem menos”, disse calmamente o Inspector mais alto, entre dois bafos num Sg Ventil já quase no filtro.
“Eu ‘tava no carro à espera da minha mãe no estacionamento, né...” começou Júlio depois de respirar fundo, “...mas passado um bocado fartei-me. A minha mãe ia só comprar o almoço e já lá estava há uma boa meia-hora. Saí do carro naquela... sei lá... ‘tava farto e ia dar uma olhadela ao supermercado a ver se a via...”
“Isso eram que horas?”, perguntou o mais baixo dos dois inspectores.
“Eh... deviam ser umas dez e meia”
“Continue”
“Eh... Bem... E quando cheguei a meio do parque de estacionamento vi que ‘tava um tipo com cara de quem ‘tava à espera de qualquer coisa na esquina do supermercado c’a rua que vai para a Estrada da Amadora. Oh pah...E eu pensei que o gajo ainda me queria assaltar, ou uma cena assim, e por isso fiquei por ali para ver se quando a minha mãe saísse ele não fazia nada... Mas também não queria que o gajo me visse... Para que é que haveria de ir à procura de chatices, n’é?”. Júlio parou de falar como que para recuperar o fôlego.
“E depois?”, instigou o mais alto, acendendo mais um Ventil.
“Depois...Depois é que foi a merda toda...”
“Força...É mesmo na merda que estamos interessados”
“Eh...pah... Apareceu o bófia por trás. Eu vi o gajo a vir mas o black não, ‘tão a ver? Vindo do nada e pelo único sítio que o black não podia ver”
“E então? O que é que o polícia fez?”, questionou o mais baixo. Parecia que falavam à vez.
“Oh...pah...O bófia vinha já c’a fusca apontada e o black ‘tava de costas nem imaginava, ‘tão a ver? Eh... pah... e de repente vira-se! ***-se... o black mete a mão no casaco enquanto se vira e fica de frente para o bófia c’a mão enfiada no casaco...”
“Mas o agente não chamou pelo homem?”, interrompeu o mais alto.
“Não pah! O gajo já vinha c’a pistola apontada e ia devagar para o outro não o ouvir. E por acaso o black vira-se quando o gajo ‘tava a chegar. O black apanhou o cagaço da vida dele quando se voltou e deu de caras c’o bófia”.
“Ok. E depois o que aconteceu?”, instigou o mais alto. Afinal não falavam à vez.
“****-se... Depois foi o bófia a dizer: O teu amigo já disse que estavas aqui armado. Deita-te já!”
“Deita-te já??”, espantou-se o mais baixo, “Tem a certeza que foi assim?”
“Absoluta!”
“E depois?”
“Oh pah...”, parou e abanando levemente a cabeça continuou. “Oh meu... O black começa a gritar que não tinha arma nenhuma e tira a mão do casaco...Eh pah... E o c***ão do bófia dispara, man! O gajo disparou man...”
O mais baixo dos dois olha para uma carteira com ar absorto. Pousa-a ao lado de uma maço de Marlboro ensanguentado numa mesa cheia de pequenos pertences.
“Fumar mata mesmo...”, diz o mais alto.
“Joel Lima... Menos um...”, diz o mais baixo.