terça-feira, 6 de setembro de 2005

PONTO DE RUPTURA


Segismundo nunca tinha disparado uma arma. Não sendo apenas por essa razão, suores frios escorriam-lhe pela fronte. As mãos tremiam-lhe. O seu cérebro funcionava em modo de sobrevivência o que significava forçosamente que o instinto se sobrepunha à razão. Mas Segismundo não sabia disso. E esse foi o seu erro.

Em 1981, no Casal de Santa Filomena, um bairro degradado da Amadora, numa rua cujo nome era o número 7, viviam várias famílias de fracas possibilidades financeiras. Na porta 23 moravam os Lima. Luís e Soraia, os pais, passavam sérias dificuldades para, com apenas dois quartos e sem casa de banho, criarem os seus cinco filhos. Quando Soraia no final do Verão engravidou novamente o sentimento não foi de grande felicidade. Joel não se pode dizer que tenha sido desejado.
Ao longo dos seus 23 anos Joel já tinha estado por variadíssimas vezes em conflito de interesses com as autoridades. Aos 9 anos fora apanhado a roubar fruta numa mercearia o que lhe valeu um sério susto na esquadra da Mina. Foi aí que conheceu o Mário, um rapazinho angolano que, sendo mais velho, lhe ensinou umas quantas coisas que talvez fosse melhor não ter aprendido. Os “mineiros”, alcunha que Mário havia inventado para os polícias destacados naquela esquadra, rapidamente passaram a ter Joel debaixo de olho. Daí em diante foram várias as vezes que Joel foi dormir à “Mina”, chegando mesmo a passar um ano num reformatório. Nunca se meteu a fundo na droga mas descobriu nela uma forma de garantir o seu ganha pão.
Foi no ano passado que Joel se endireitou. A razão desta súbita mudança de comportamento chamava-se Eunice.
“Estou farta!”, atirou ela, “Não te vou buscar à “mina” nem mais uma vez!”. E pronto. Podia ter sido mais uma frase de uma discussão que se repetia por tantas casas daquele bairro. Mas Eunice era diferente e Joel sabía-o. Tinha de optar. E ele escolheu aquela rapariga de olhos verdes que tanto o fascinava.

Naquela manhã fria de Novembro o supermercado estava praticamente vazio. Os carrinhos circulavam livremente pelos corredores sem obstáculos nenhuns.
Quando Joel entrou para comprar pão e leite não imaginava quem é que iria encontrar ali.
“Jôjô... man... ‘tavas nos frosques?”, ouviu por detrás da sua cabeça. “Já não te via há bués...”, continuou Mário perante um Joel incomodado. No último ano evitava Mário sempre que podia. Isto tinha sido facilitado porque mais de metade desse ano Mário havia-o passado na cadeia. Não o fora visitar. E quando ele saira há um mês Joel passara a não frequentar os sítios onde sabia que o poderia encontrar.
“Não man... Tenho andado busy... C’a miúda a moer-me a cabeça... ‘Tás a ver?”, respondeu-lhe um Joel atrapalhado. E tinha razões para isso. Quando se está dentro de uma organização criminosa, por mais pequena que ela seja, sair é sempre difícil.
“Yah man... É na pura... Mas... ainda há o stress daquelas 50 gramas que me cravaste antes de eu ir para a choldra...”, lembrou-lhe Mário da razão de tanto incómodo.
“Pois... Eh... ando à rasca man... Pá’ semana?”, alvitrou esperançado.
“Man... Se eu esquecer a cena... ‘Tás a ver man?... É um favor que faço... Né?”, Mário falava como um agente do KGB em plena guerra fria. “E tens de morder man que...”, continuou em tom secretivo, “se eu ‘tou pa’ ti... tu ‘tás pa’ mim...”,terminou com um gesto dramático que parecia mimetizado do D. Corleone de Marlon Brando.
“...Eh...E que favor é esse, man?”, inquiriu um fortemente apreensivo Joel.
“Ohhhhhh... n’é nada bro...”
“Nada como? Droga?”, insistiu Joel.
“Não te preocupes man...”

“Aquilo foi uma cena muit’a marada”, declarou um nervosíssimo Júlio perante os dois Inspectores da Polícia Judiciária. “Nem sei o que vos diga...”,continuou.
“Tenha calma e conte-nos exactamente o que viu. Nem mais nem menos”, disse calmamente o Inspector mais alto, entre dois bafos num Sg Ventil já quase no filtro.
“Eu ‘tava no carro à espera da minha mãe no estacionamento, né...” começou Júlio depois de respirar fundo, “...mas passado um bocado fartei-me. A minha mãe ia só comprar o almoço e já lá estava há uma boa meia-hora. Saí do carro naquela... sei lá... ‘tava farto e ia dar uma olhadela ao supermercado a ver se a via...”
“Isso eram que horas?”, perguntou o mais baixo dos dois inspectores.
“Eh... deviam ser umas dez e meia”
“Continue”
“Eh... Bem... E quando cheguei a meio do parque de estacionamento vi que ‘tava um tipo com cara de quem ‘tava à espera de qualquer coisa na esquina do supermercado c’a rua que vai para a Estrada da Amadora. Oh pah...E eu pensei que o gajo ainda me queria assaltar, ou uma cena assim, e por isso fiquei por ali para ver se quando a minha mãe saísse ele não fazia nada... Mas também não queria que o gajo me visse... Para que é que haveria de ir à procura de chatices, n’é?”. Júlio parou de falar como que para recuperar o fôlego.
“E depois?”, instigou o mais alto, acendendo mais um Ventil.
“Depois...Depois é que foi a merda toda...”
“Força...É mesmo na merda que estamos interessados”
“Eh...pah... Apareceu o bófia por trás. Eu vi o gajo a vir mas o black não, ‘tão a ver? Vindo do nada e pelo único sítio que o black não podia ver”
“E então? O que é que o polícia fez?”, questionou o mais baixo. Parecia que falavam à vez.
“Oh...pah...O bófia vinha já c’a fusca apontada e o black ‘tava de costas nem imaginava, ‘tão a ver? Eh... pah... e de repente vira-se! ***-se... o black mete a mão no casaco enquanto se vira e fica de frente para o bófia c’a mão enfiada no casaco...”
“Mas o agente não chamou pelo homem?”, interrompeu o mais alto.
“Não pah! O gajo já vinha c’a pistola apontada e ia devagar para o outro não o ouvir. E por acaso o black vira-se quando o gajo ‘tava a chegar. O black apanhou o cagaço da vida dele quando se voltou e deu de caras c’o bófia”.
“Ok. E depois o que aconteceu?”, instigou o mais alto. Afinal não falavam à vez.
“****-se... Depois foi o bófia a dizer: O teu amigo já disse que estavas aqui armado. Deita-te já!”
“Deita-te já??”, espantou-se o mais baixo, “Tem a certeza que foi assim?”
“Absoluta!”
“E depois?”
“Oh pah...”, parou e abanando levemente a cabeça continuou. “Oh meu... O black começa a gritar que não tinha arma nenhuma e tira a mão do casaco...Eh pah... E o c***ão do bófia dispara, man! O gajo disparou man...”

O mais baixo dos dois olha para uma carteira com ar absorto. Pousa-a ao lado de uma maço de Marlboro ensanguentado numa mesa cheia de pequenos pertences.
“Fumar mata mesmo...”, diz o mais alto.
“Joel Lima... Menos um...”, diz o mais baixo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2005

A COISA QUE NÃO DEVERIA SER

para o meu Pai

O Grande Homem subia com extrema dificuldade as escadas. Dois homens, não tão grandes, o ladeavam e ofereciam amparo para que ele não caísse. Não havia nada de especial no cimo das escadas. Não havia nenhuma necessidade específica que justificasse tamanha empresa. Mas ele continuou com todo o esforço do mundo a fazer aquilo que já fazia há oitenta longos anos. Não seria hoje que falharia. Não. Falhar, falham os jovens. Os velhos sabem. E Ele sabia. Sabia que não teria de subir aquelas escadas mais nenhuma vez.

António nasceu no interior esquecido e atrasado de um Portugal longínquo que vivia ainda os decrépitos últimos anos da I República. Quando o imponente General Gomes da Costa proferiu o seu infame discurso de Coimbra, António era novo de mais para perceber sequer que a revolução estava em marcha. Mas, com sagaz e precoce inteligência, ouviu palavra por palavra a transmissão radiofónica do primeiro discurso do novo Presidente do Conselho. Estávamos em 1930 e Oliveira Salazar tornava-se Chefe de Governo da Ditadura. António exultava. O povo estava entusiasmado acreditando no jovem estadista e no futuro do Império.
António ligava a tudo. Percebia tudo. Rapidamente ultrapassou a mãe na capacidade de compreender o mundo, se bem que este em Vila Nova de Foz Côa, a mais de um dia de distância de Lisboa, capital de um país orgulhosamente só, não fosse o mundo amplo e rico que uma mente dotada como a de António mereceria. Conhecia os pássaros e a natureza. Empenhava-se em pequenas engenhocas com os amigos, tendo ficado mestre na arte de contruir uns pequenos carros de corrida em que só os realmente bons e profissionais não se desfaziam monte abaixo sob o peso do seu tripulante. Era um nadador exímio. Quantas vezes se teria banhado no rio Côa, onde tantos anos depois se descobririam gravuras rupestres de particular importância. Os amigos respeitavam-no. Não era de andar sempre à pancada mas era de punho fácil. E impunha respeito.
A infância foi feliz. E traquinas. Um bom passatempo para ele e os amigos era esperar atrás de uma curva que alguém passasse numa bicicleta. Grandes risadas deram ao verem as caras surpreendidas daqueles que por força de um pau espetado por entre os rails da roda dianteira se estatelavam ao comprido no chão... Não era bonito. Mas tinha piada.

É interessante como aqueles que estão prestes a partir se lembram de muitas coisas que passaram a vida a esquecer-se. A infância... Esse mundo maravilhoso e sem limites onde nós nos multiplicamos numa imensidão de seres, cada um mais extraordinário do que o outro... Um dia somos polícias, no outro somos ladrões. Um dia o Super-Homem, no outro o Batman. Um dia jogador de futebol, no outro um brilhante piloto que conduz uma potentíssima mota que, por acaso tem um selim e pedais... Quando somos crianças podemos ser tudo e não temos de ser nada. Todas as opções estão em aberto.
O Grande Homem, sentado na sua poltrona favorita, olhava pela janela do seu escritório. Interrogava-se como seria possível que aquele António traquinas se tivesse tornado neste idoso em tão pouco tempo.
Há uma certa serenidade em quem aceita a única coisa que é definitiva.
O GrandeHomem aceitava a Coisa Que Não Deveria Ser com toda a dignidade. Quem é velho sabe que há batalhas que não se devem combater. E há algumas verdades inalienáveis.

Aos dezoito anos António viu-se em apuros. O seu pai falecera e, em plena II Guerra Mundial, encontrava-se com a mãe e duas irmãs a seu cargo.
Não foi uma altura fácil. Trabalhava durante a noite numa empresa de material electrónico onde aplicando-se com extraordinário afinco conseguia terminar as suas tarefas mais cedo e juntando quatro cadeiras, duas lado a lado, dormitava durante uma ou duas horas antes de ir para a Universidade. Estudar engenharia com tão poucas horas de sono não era fácil. Descobriu que conseguia dormitar nas aulas sem ser apanhado, escondendo a cabeça com a mão esquerda que se apoiava na sua testa enquanto mexia o seu lápis, como se tomasse apontamentos, com a mão direita.
Tirou o curso com distinção e mudou de emprego. Seria bem sucedido. Toda a gente que o conhecia o sabia.

O Grande Homem riu-se para si próprio. Como lhe pareciam confortáveis aquelas cadeiras naqueles tempos. Tinha saudades de sentir aquela força que só os jovens têm. A capacidade de tornar a adversidade em seu favor. De se sujeitar a tudo. A sede de conquista. A garra da vitória...
Entusiasmado pela recordação dessa energia levantou-se com o olhar do António traquinas...

António era um homem bem parecido. Levava as meninas a passear ou a ver um espectáculo. Viajava muito sempre com aquela mala de viagem que comprara na sua primeira vez em Paris. A Paris do final dos anos quarenta. Os cabarés, os artistas de rua e as óperas. A Paris libertada da guerra. A Paris renascida e livre...
António exultava com a Europa. Visitou todos os recantos do Velho continente. E foi a África. E correu toda a América. Viu o Novo Mundo e a esperança da América do Norte, visitou as velhas pirâmides da Central e experienciou os perigos da do Sul... Já mais velho visitou a Ásia. O fascinio exótico da Tailândia ou a comida intragável dos Chineses. Na sua viagem conhecera o mundo inteiro. Vira o bom e o mau. As belezas naturais e as conquistas arquitectónicas da Humanidade. Conhecera as gentes do mundo.

O Grande Homem tentava agora vestir, com bastante dificuldade, o seu sobretudo preferido. “O mais distinto do São Carlos”, dissera vezes sem conta aos seus filhos. O Grande Homem sorria sentindo-se o pequeno António a fazer uma qualquer traquinice. Vestir um sobretudo no pino do verão pode parecer uma loucura ou pelo menos uma profunda idiotice para qualquer um. Mas para o Grande Homem aquilo que os outros pensavam dele já não lhe interessava para rigorosamente nada. Era o seu sobretudo. E queria vesti-lo.
O Grande Homem era Grande porque era muito mais do que aquele velho e frágil ser humano. O Grande Homem era Grande porque era o António traquinas e sonhador ao mesmo tempo que o jovem que competia com marinheiros em bares a ver quem bebia mais shot´s de whiskey ou canecas de cerveja. Sentia-se fraco. Mas forte de espírito. Determinado. Sabia o seu destino. Mas continuava a sonhar. Sonhava com o sucesso dos seus filhos. Sonhava com o início de vida dos seus netos. Sonhava, ainda, com as brincadeiras dos seus bisnetos. Na última semana vira-os a quase todos. Estava pronto.

António casou mais do que uma vez. Que se soubese tinha três filhos. No entanto não seria totalmente descabido pensar-se que pudesse ter mais. Só ele, ou nem mesmo ele, o saberia. A sua vida era plena de conquistas e bons momentos. António era corajoso. Após o 25 de Abril, durante o PREC, quando os executivos de topo iam para o emprego nos automóveis das mulheres para que os operários não vissem a sua riqueza, António trocou o seu único carro por um distinto MG B GT. Ninguém se atreveu a riscá-lo.
António detestava comunistas. Não suportava as camisas para fora nem as barbas longas. Irritavam-no os discursos cassete de operários que queriam ter sem esforço aquilo para o qual ele estudara e trabalhara anos a fio sem dormir. Uma vez, quando saía da Companhia e viu umas dezenas de trabalhadores juntos num mini-comício marxista foi até lá e começou a chamar-lhes calões. O primeiro que se mexeu na sua direcção levou um murro nos queixos que ficou logo prostrado no chão. Tal como o segundo. Com a ajuda de mais dois colegas puseram fim à manifestação.
Nessa altura andavam a ocupar casas. A de António era isolada nas escarpas do Guincho. Dormia na sua cadeira de baloiço agarrado à sua caçadeira. Quando eles finalmente tentaram tomar-lhe a casa pô-los em fuga apontando a sua arma. Eram mais de vinte. “Sou divorciado, os meus filhos estão criados...Avancem! Avancem todos! A sério! Garanto-lhes que os primeiro doze caem!”, gritou-lhes ele. Ninguém avançou. E mais ninguém tentou ocupar aquela casa. “O gajo é maluco”, diziam os vermelhos da zona.

Estes acontecimentos marchavam pela mente do Grande Homem. Mais uma vez António exultou. Que grande viagem tinha sido aquela desde Vila Nova de Foz Côa, no distante ano de 1924 até ao ano 2005. Como o mundo tinha mudado. O seu último carro tinha duzentos cavalos. O primeiro que havia conduzido tinha dois bois... O mundo era tão mais pequeno com a televisão. Lembrou-se dos relatos emocionantes do Peça na Londres bombardeada pela aviação Nazi. Na altura a guerra não se via... A sua primeira televisão fizera sucesso. Toda a gente da rua tinha ido lá a casa para ver aquela primeira transmissão da Feira Popular. Que orgulho que tinha sentido! Lembrou-se daquela viagem a Amsterdão, no tempo em que não havia auto-estradas, para ver o Benfica jogar a final dos Campeões Europeus com o Real Madrid. Quando o Benfica perdia 2 – 0 chegou a pensar que tinha feito 4000 quilómetros para nada mas com um golo do Águas e outro do Cávem o Benfica acaba por empatar. A perder 3 – 2 ao intervalo, na segunda parte o Coluna volta a empatar e o grande Eusébio marca mais dois fazendo com que o Benfica fosse Bi-Campeão Europeu derrotando o mítico Real Madrid por 5 – 3. Poucos Portugueses estavam no Estadio Olímpico de Amsterdão e António era o que mais saltava ao ver com os próprios olhos o momento mais glorioso da vida do Glorioso.
Lembrou-se daquela modelo francesa que conhecera no combóio. Mais tarde viria a mudar-se para Portugal para estar com ele. Lembrou-se de muitas outras mulheres. Aquela alemã de cuja janela teve de saltar em cuecas para fugir do marido...
O Grande Homem pensou na sua mulher. Tinha sido a sua fiel companheira dos últimos anos. E chamou-a.

Ela pegava na mão do Grande Homem. A expressão dele era de fragilidade absoluta. Mas um sorriso despontava. A Grande Viagem tinha valido apena. Deitado na cama, sob os lençois e com o seu sobretudo, o Grande Homem despediu-se com um até breve. Afinal, na escala cósmica que diferença fazem dez, vinte ou cem anos? Vamos todos para o mesmo sítio...
O grande Homem apertou-lhe a mão. E depois deixou de apertar. A cabeça dela caiu sobre a cama. O António traquinas deixara de ser.