Ela murmurava algo verdadeiramente imperceptível.
Vestida com um robe de banho que apertava com força, estava naquilo há horas de certeza.
Num ritmo frenético balançava-se interminavelmente para a frente e para trás. E murmurava.
Nada se ouvia naquela casa a não ser o stressante ranger da cadeira de madeira sob o peso de uma rapariga nova. E os seus murmúrios.
Quando eu entrei na sala fiquei sem saber o que fazer.
"Ana! O que é que se passa?", atirei eu.
A resposta foram mais murmúrios imperceptíveis e angustiantes.
Aquilo não era normal.
A Ana era uma rapariga que eu tinha conhecido há algum tempo atrás. Dávamo-nos bem e construímos uma relação interessante.
Ela escrevia pequenas frases para cartões numa pequena empresa familiar mas o que queria mesmo fazer era escrever um livro. Encorajei-a sempre a dar esse passo mas ela ainda não o havia feito. Dizia que ainda não era altura. Ao mesmo tempo trabalhava como vendedora numa loja de moda num centro comercial suburbano.
Foi aí que eu a conheci.
Andava à procura de uma prenda para o dia da Mãe. Não sei como será com as outras pessoas mas para mim encontrar uma prenda que seja, digamos, perfeita, não é um desafio fácil
para não dizer impossível
e qualquer tipo de ajuda vai bem.
"E que tal uma camisola", inquiriu uma bela rapariga, morena e de olhos verdes.
Retorqui que não me parecia má ideia. Tão simples, não é?
Passado uma semana andava de caso novo com uma rapariga gira, inteligente e cheia de piada.
O tempo foi passando de uma maneira bem agradável. Gastava um pouco mais de gasolina para estar com ela mas, enfim, há sacrifícios que vale bem a pena fazer.
Ao vê-la ali tão perturbada não a reconheci.
É preciso ver as coisas como elas são. A Ana crescera no interior esquecido do país. Quando tinha nove anos perdeu a mãe e o pai num acidente de viação. Foi criada por uns tios que viviam mais a norte. A vida não era fácil. Tinha de ajudar na quinta e os tios não se importavam se ela ia às aulas ou não. Só queriam saber se tinha tratado dos animais e da horta.
Levantava-se todos os dias ás cinco e meia da manhã para tratar dos seus afazeres na quinta antes de ir para a escola. Ás vezes faltava mas mesmo assim era a melhor aluna da turma. Adorava a disciplina de Português porque podia escrever pequenas histórias nas aulas de composição escrita. Começou a escrever poemas mas não tinha ninguém que estivesse interessado em lê-los. Era pena.
Aos quinze anos soube por uns primos que um outro primo vivia em Braga onde tinha um restaurante. Por vontade própria falou com ele e foi para lá, onde passou a viver num pequeno quarto pago com o dinheiro que recebia do seu trabalho no restaurante. Cozinhava, limpava e servia ás mesas. Para poder alugar o quarto, arranjou um Bilhete de Identidade que dizia que tinha dezoito anos onde colocou uma fotografia que, com a ajuda da copeira que percebia de maquilhagem, a fazia parecer bem mais velha.
Além disto tudo ainda arranjava tempo para estudar. Acabou o secundário com uma razoável média de catorze, na área de humanidades e sem nunca ter chumbado.
Eu não tenho jeito para datas. Não decoro uma. Não sei dizer precisamente há quanto tempo é que a Ana é a minha namorada. Mas já lá vai bem mais do que um ano. Sim. Posso dizê-lo com toda a certeza porque ainda aqui há uns meses atrás fomos jantar a comemorar o nosso aniversário.
Fomo-nos conhecendo a pouco e pouco. À medida que ela me ia contando a história da vida dela o meu respeito por ela aumentava incomensuravelmente. Ela não era uma miúda qualquer. Era uma grande mulher.
Recordar tudo aquilo que eu sentia por ela só me fazia compreender menos aquilo que se passava agora à frente dos meus olhos.
Ela não chorava certamente porque já não tinha mais lágrimas para deitar fora. Não falava comigo. Não falava por e simplesmente.
"Vou chamar um médico", disse-lhe não estando certo de que ela tivesse ouvido. A reacção foi nula. Ela não estava cá.
Telefonei para um amigo dos meus pais que era psicólogo e descrevi-lhe aquilo que estava a acontecer. Ele prontificou-se logo a ajudar-me.
Peguei em algumas das suas roupas, vesti-lhe um casaco e levámo-la para uma clínica de um seu amigo onde com a ajuda de algumas drogas com nomes impronunciáveis ela adormeceu.
"Ela vai ficar assim durante bastantes horas. Talvez umas sete ou oito", foi-me dito.
Fui novamente para casa dela na esperança de perceber melhor o que teria acontecido.
Aquela sala vazia parecia ainda estar cheia de lamentos. Cheia de tristeza. A dela e a minha.
Pensei em avisar alguém da família dela mas depois não discerni quem deveria avisar. Os tios nem pensar. Talvez o primo. Não, esse também não. Aquilo lá em Braga também não tinha corrido muito bem. Depois dela acabar o secundário o primo não levou muito a bem a sua vontade de vir para Lisboa estudar na universidade. Talvez se tivesse apaixonado por ela. Não era difícil alguém se apaixonar por ela. Mas isso também já tinha sido há uns anos atrás.
Quando a Ana chegou a Lisboa teve de começar tudo de novo. Mas mais uma vez ela triunfou. Arranjou estes dois empregos e ainda teve tempo para começar a tirar um curso de artes literárias. Faltam-lhe dois anos e depois acaba. Dra. Ana. Se a vida dela não é a prova cabal da imensa força interior que um ser humano consegue ter dentro de si próprio, então não sei o que poderá ser. O que a teria quebrado desta maneira tão veemente e inacreditável?
Não avisei ninguém. Acho que também não queria que alguém a visse assim.
Adormeci durante umas horas. Sinceramente, não sei quantificar quantas foram.
Quando acordei parecia que o tempo não tinha passado. Lá estava a cadeira. Lá estavam os murmúrios.
Demoradamente chapinhei no lavatório. Só me vinha a Ana à cabeça. Fechei a torneira e olhei-me vagamente no espelho do armário que ela tem por cima do lavatório. Continuava atónito. Desesperado. Inquieto.
Abri o armário por reflexo condicionado. É raro utilizar o lavatório e não abrir o armário para tirar a escova de dentes e em minha casa há um armário praticamente igual. Ia fechá-lo a pensar na estupidez da sua abertura, quando reparei numa caixa cujo título não dava margem para dúvidas.
Há muito tempo que não sentia aquele calafrio na espinha quando nos apercebemos repentinamente de algo que não estávamos minimamente à espera. Qualquer coisa que tivesse acontecido com a Ana estaria certamente relacionada com o conteúdo daquela caixa.
Saí a correr de casa e fui a toda a velocidade no meu velho Renault 5 para o hospital. Nem olhei para o resto da casa de banho. Se o tivesse feito teria percebido tudo sem margem para dúvidas. Lembrei-me durante o caminho que a Ana há umas semanas atrás
seria há menos ou mais de um mês?
andou-se a queixar de andar mal da barriga de manhã. Até tinha vomitado algumas vezes. Seria coincidência a mais. Quando recordei aqueles minutos em que ela se balançava inquietamente naquela cadeira velha, murmurando desesperos, só me vinha à cabeça uma solução.
Corri pelas escadas acima e irrompi pelo quarto dela a dentro. Ela estava acordada. Olhámo-nos e eu vi logo que algo dentro dela estava diferente. O olhar era vazio. Distante. Triste. Só me lembro de um dia ter visto esse olhar.
uma senhora que me alugara um quarto em Dubrovnik
Ali, naquele momento eu soube com toda a certeza. Era o olhar de uma mãe que perdera um filho.
Vestida com um robe de banho que apertava com força, estava naquilo há horas de certeza.
Num ritmo frenético balançava-se interminavelmente para a frente e para trás. E murmurava.
Nada se ouvia naquela casa a não ser o stressante ranger da cadeira de madeira sob o peso de uma rapariga nova. E os seus murmúrios.
Quando eu entrei na sala fiquei sem saber o que fazer.
"Ana! O que é que se passa?", atirei eu.
A resposta foram mais murmúrios imperceptíveis e angustiantes.
Aquilo não era normal.
A Ana era uma rapariga que eu tinha conhecido há algum tempo atrás. Dávamo-nos bem e construímos uma relação interessante.
Ela escrevia pequenas frases para cartões numa pequena empresa familiar mas o que queria mesmo fazer era escrever um livro. Encorajei-a sempre a dar esse passo mas ela ainda não o havia feito. Dizia que ainda não era altura. Ao mesmo tempo trabalhava como vendedora numa loja de moda num centro comercial suburbano.
Foi aí que eu a conheci.
Andava à procura de uma prenda para o dia da Mãe. Não sei como será com as outras pessoas mas para mim encontrar uma prenda que seja, digamos, perfeita, não é um desafio fácil
para não dizer impossível
e qualquer tipo de ajuda vai bem.
"E que tal uma camisola", inquiriu uma bela rapariga, morena e de olhos verdes.
Retorqui que não me parecia má ideia. Tão simples, não é?
Passado uma semana andava de caso novo com uma rapariga gira, inteligente e cheia de piada.
O tempo foi passando de uma maneira bem agradável. Gastava um pouco mais de gasolina para estar com ela mas, enfim, há sacrifícios que vale bem a pena fazer.
Ao vê-la ali tão perturbada não a reconheci.
É preciso ver as coisas como elas são. A Ana crescera no interior esquecido do país. Quando tinha nove anos perdeu a mãe e o pai num acidente de viação. Foi criada por uns tios que viviam mais a norte. A vida não era fácil. Tinha de ajudar na quinta e os tios não se importavam se ela ia às aulas ou não. Só queriam saber se tinha tratado dos animais e da horta.
Levantava-se todos os dias ás cinco e meia da manhã para tratar dos seus afazeres na quinta antes de ir para a escola. Ás vezes faltava mas mesmo assim era a melhor aluna da turma. Adorava a disciplina de Português porque podia escrever pequenas histórias nas aulas de composição escrita. Começou a escrever poemas mas não tinha ninguém que estivesse interessado em lê-los. Era pena.
Aos quinze anos soube por uns primos que um outro primo vivia em Braga onde tinha um restaurante. Por vontade própria falou com ele e foi para lá, onde passou a viver num pequeno quarto pago com o dinheiro que recebia do seu trabalho no restaurante. Cozinhava, limpava e servia ás mesas. Para poder alugar o quarto, arranjou um Bilhete de Identidade que dizia que tinha dezoito anos onde colocou uma fotografia que, com a ajuda da copeira que percebia de maquilhagem, a fazia parecer bem mais velha.
Além disto tudo ainda arranjava tempo para estudar. Acabou o secundário com uma razoável média de catorze, na área de humanidades e sem nunca ter chumbado.
Eu não tenho jeito para datas. Não decoro uma. Não sei dizer precisamente há quanto tempo é que a Ana é a minha namorada. Mas já lá vai bem mais do que um ano. Sim. Posso dizê-lo com toda a certeza porque ainda aqui há uns meses atrás fomos jantar a comemorar o nosso aniversário.
Fomo-nos conhecendo a pouco e pouco. À medida que ela me ia contando a história da vida dela o meu respeito por ela aumentava incomensuravelmente. Ela não era uma miúda qualquer. Era uma grande mulher.
Recordar tudo aquilo que eu sentia por ela só me fazia compreender menos aquilo que se passava agora à frente dos meus olhos.
Ela não chorava certamente porque já não tinha mais lágrimas para deitar fora. Não falava comigo. Não falava por e simplesmente.
"Vou chamar um médico", disse-lhe não estando certo de que ela tivesse ouvido. A reacção foi nula. Ela não estava cá.
Telefonei para um amigo dos meus pais que era psicólogo e descrevi-lhe aquilo que estava a acontecer. Ele prontificou-se logo a ajudar-me.
Peguei em algumas das suas roupas, vesti-lhe um casaco e levámo-la para uma clínica de um seu amigo onde com a ajuda de algumas drogas com nomes impronunciáveis ela adormeceu.
"Ela vai ficar assim durante bastantes horas. Talvez umas sete ou oito", foi-me dito.
Fui novamente para casa dela na esperança de perceber melhor o que teria acontecido.
Aquela sala vazia parecia ainda estar cheia de lamentos. Cheia de tristeza. A dela e a minha.
Pensei em avisar alguém da família dela mas depois não discerni quem deveria avisar. Os tios nem pensar. Talvez o primo. Não, esse também não. Aquilo lá em Braga também não tinha corrido muito bem. Depois dela acabar o secundário o primo não levou muito a bem a sua vontade de vir para Lisboa estudar na universidade. Talvez se tivesse apaixonado por ela. Não era difícil alguém se apaixonar por ela. Mas isso também já tinha sido há uns anos atrás.
Quando a Ana chegou a Lisboa teve de começar tudo de novo. Mas mais uma vez ela triunfou. Arranjou estes dois empregos e ainda teve tempo para começar a tirar um curso de artes literárias. Faltam-lhe dois anos e depois acaba. Dra. Ana. Se a vida dela não é a prova cabal da imensa força interior que um ser humano consegue ter dentro de si próprio, então não sei o que poderá ser. O que a teria quebrado desta maneira tão veemente e inacreditável?
Não avisei ninguém. Acho que também não queria que alguém a visse assim.
Adormeci durante umas horas. Sinceramente, não sei quantificar quantas foram.
Quando acordei parecia que o tempo não tinha passado. Lá estava a cadeira. Lá estavam os murmúrios.
Demoradamente chapinhei no lavatório. Só me vinha a Ana à cabeça. Fechei a torneira e olhei-me vagamente no espelho do armário que ela tem por cima do lavatório. Continuava atónito. Desesperado. Inquieto.
Abri o armário por reflexo condicionado. É raro utilizar o lavatório e não abrir o armário para tirar a escova de dentes e em minha casa há um armário praticamente igual. Ia fechá-lo a pensar na estupidez da sua abertura, quando reparei numa caixa cujo título não dava margem para dúvidas.
Há muito tempo que não sentia aquele calafrio na espinha quando nos apercebemos repentinamente de algo que não estávamos minimamente à espera. Qualquer coisa que tivesse acontecido com a Ana estaria certamente relacionada com o conteúdo daquela caixa.
Saí a correr de casa e fui a toda a velocidade no meu velho Renault 5 para o hospital. Nem olhei para o resto da casa de banho. Se o tivesse feito teria percebido tudo sem margem para dúvidas. Lembrei-me durante o caminho que a Ana há umas semanas atrás
seria há menos ou mais de um mês?
andou-se a queixar de andar mal da barriga de manhã. Até tinha vomitado algumas vezes. Seria coincidência a mais. Quando recordei aqueles minutos em que ela se balançava inquietamente naquela cadeira velha, murmurando desesperos, só me vinha à cabeça uma solução.
Corri pelas escadas acima e irrompi pelo quarto dela a dentro. Ela estava acordada. Olhámo-nos e eu vi logo que algo dentro dela estava diferente. O olhar era vazio. Distante. Triste. Só me lembro de um dia ter visto esse olhar.
uma senhora que me alugara um quarto em Dubrovnik
Ali, naquele momento eu soube com toda a certeza. Era o olhar de uma mãe que perdera um filho.